29 de out. de 2009

Noturno

Era um terreno baldio, era noite.
Alguém acendeu a sala da casa próxima
e conciso, o clarão veio surpreender uma égua que aleitava sua cria.
O ouro da lâmpada
No verde de humildes arbustos,
Nos flancos brilhantes,
O silencioso latejar do sangue
à mercê das sombras e da luz.

José Paulo Moreira da Fonseca
em A tempestade e outros poemas de 1956




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28 de out. de 2009

No Brasil quem paga impostos são os pobres


Lúcia Rodrigues  da Fundação Lauro Campos via Caros Amigos
Qui, 15 de outubro de 2009 14:22



Imposto
O estudo divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) sobre carga tributária e capacidade do gasto público no Brasil revela que são os trabalhadores os responsáveis pela maior parcela da arrecadação tributária no país. O percentual despendido para o pagamento de tributos é inversamente proporcional à renda dos brasileiros.

Quem recebe até dois salários mínimos de renda familiar mensal, ou seja, meio salário mínimo percapita por mês (levando-se em conta que o padrão de estrutura familiar no Brasil é composto por quatro pessoas), contribuiu no ano passado, com 53.9% desses recursos para o pagamento de tributos. Ao passo que o esforço dos que se encontram na outra ponta da tabela e recebem acima de 30 salários mínimos ficou na casa dos 29%.
O total de dias trabalhados para o pagamento de impostos por esses trabalhadores de baixa renda foi de 91 dias a mais no ano do que os que se encontram no topo da tabela. Ou seja, os trabalhadores mais pobres tiveram de trabalhar três meses a mais do que aqueles que recebem acima da faixa de 30 salários mínimos de renda familiar mensal.
"O sistema tributário brasileiro tem uma preferência. Fez a opção pelos ricos e proprietários", afirma o presidente do Ipea, Márcio Pochmann. Ele conta que a tributação no país está focada sobre o consumo, principalmente, dos produtos destinados à população de baixa renda.
"Mas geralmente quem reclama da carga tributária são os ricos. Rico não querer pagar imposto, não é um fenômeno novo, é secular. Infelizmente somos um país que não tem cultura democrática. O sistema político expressa os interesses daqueles que têm propriedade e têm mais recursos para fazer valer os seus direitos", argumenta.
O papel do Ipea ao produzir estudos dessa natureza é o de mostrar a realidade do país, segundo Pochmann. "Conhecer a realidade é o primeiro passo para transformá-la. No Brasil se tributam alimentos. Nos países desenvolvidos essa tributação não ocorre, pois são bens de primeira necessidade", frisa. Ele defende a ideia de que é preciso avançar em um mecanismo de educação tributária. "Deve-se informar nos produtos quais são os tributos embutidos neles."
A estimativa do Ipea para a carga tributária bruta, em 2008, foi de 36,2% do PIB (Produto Interno Bruto), a soma de tudo o que é produzido no país. Para o diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), João Sicsú, a carga tributária no Brasil não é alta, mas mal distribuída. Ele foi um dos técnicos que participou da elaboração do estudo. Durante aproximadamente um ano e meio dezenas de técnicos do instituto se debruçaram sobre o tema.
"A grande imprensa fala que a carga tributária no Brasil é muito alta. Mas não é verdade. Ela tem distorções. O que tem de se fazer é tornar a carga tributária progressiva. Quem tem mais, paga mais, quem tem menos, paga menos", ressalta.
Segundo Sicsú, uma das distorções a ser corrigida é o baixo escalonamento de alíquotas do imposto de renda da pessoa física. "Até o ano passado só tínhamos três alíquotas. Maior justiça tributária se faz com um maior número de alíquotas. Deve-se atingir com alíquotas mais elevadas, quem tem rendas mais elevadas."
No Brasil, o imposto de renda para a pessoa física tem cinco alíquotas, a mais alta fica na casa de 27,5%. "A França tem doze alíquotas. Mas não é só o número de faixas que precisa ser corrigido. Tem de ter alíquotas mínimas e máximas", frisa.
Na França a alíquota mínima é 5% e a máxima de 57%. Na Holanda a máxima é de 60%, na Bélgica, 55%, na Alemanha, 53%, na Áustria, 50%, Austrália 47%, Israel 50%, Itália 45% e Estados Unidos, 40%. "O imposto de renda é o instrumento para se fazer justiça tributária, sobre a renda, sobre a riqueza", destaca Sicsú.
Uma das características dos países desenvolvidos ou daqueles que honram o título de países em desenvolvimento é ter uma baixa carga tributária recaindo sobre impostos indiretos, caracterizados basicamente pelos tributos que taxam o consumo.
"Quando se compra um quilo de feijão, o rico e o pobre pagam o mesmo imposto embutido no preço final. Mas isso é absolutamente injusto, porque o esforço que o pobre faz para pagá-lo é infinitamente superior ao do rico."
Para ele, o ponto central do argumento que deve ser discutido para se reverter essa distorção na tributação brasileira é aumentar os impostos sobre a renda e a riqueza e diminuir o peso dos impostos indiretos.
"A legislação tem de ser modificada para corrigir essas distorções. Tem de se criar mais alíquotas no imposto de renda, tributar a riqueza de uma forma mais justa, tributar a propriedade, o automóvel, apartamento, a herança, lancha, ferrari, o iate..."
(continue a ler)

27 de out. de 2009

Entidades pedem que homofobia tenha mesmo tratamento de racismo

Entidades ligadas aos direitos dos homossexuais, travestis e transexuais cobraram, nesta quinta-feira, que a homofobia tenha o mesmo tratamento legal que a prática de racismo. Durante seminário sobre homofobia nas escolas, promovido pela Comissão de Legislação Participativa e pela Comissão de Educação e Cultura, alguns participantes defenderam que só a criminalização da prática poderá reduzir o preconceito contra essa população, especialmente nas escolas.

Rodrigo Bittar, Agência Câmara

Um dos objetivos do grupo é aprovar o Projeto de Lei 5003/01, que considera crime o preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. A proposta, da ex-deputada Iara Bernardi (PT-SP), foi aprovada pela Câmara em 2006 e tramita no Senado com o número 122/06.

Paralelamente, as entidades reivindicaram a capacitação de educadores para atender pessoas de diferentes orientações sexuais nas escolas a fim de evitar a agressão contra os homossexuais e garantir seu direito à educação. "A escola é um inferno", definiu o militante da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) Beto de Jesus.

Segundo ele, a simples mudança dos parâmetros curriculares não é suficiente porque não garante o que chamou de "humanização das pessoas". "Não me contento, como ativista, a ficar só sob o guarda-chuva dos direitos humanos, porque o termo higieniza a situação e tira os corpos das pessoas, que devem ser tratadas especificamente como gays, lésbicas, travestis", declarou.

Para o presidente da ABGLT, Toni Reis, a comparação com o racismo é necessária em termos criminais, ainda que não seja precisa no convívio social. "Em alguma medida, a situação do homossexual é mais delicada, porque muitas vezes não conta com o apoio familiar, enquanto as crianças negras agredidas nas escolas podem contar com os pais para tomarem providências", acrescentou.

Preconceito dos professores

O preconceito vivenciado nas escolas foi ilustrado por dados divulgados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). De acordo com pesquisa realizada em 2004 em 14 capitais brasileiras, reapresentada no seminário, até 22% dos professores consideram a homossexualidade uma doença, sendo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) mudou esse conceito em 1990.

A representante da organização no evento, Rebeca Otero, lembrou que a mesma pesquisa demonstrou que 25% dos alunos não gostariam de ter um colega gay - preconceito que, segundo ela, é prestigiado no ambiente social. "A homofobia é muito pouco documentada, e as pessoas que têm preconceito não são penalizadas, muito pelo contrário", disse. Ela criticou os dicionários e os livros didáticos distribuídos pelo Ministério da Educação que difundem termos preconceituosos e "silenciam" quanto a formas diversas de relações sociais e familiares.

O secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Eeducação, André Lázaro, manifestou apoio ao projeto que tramita no Senado, mas diferenciou "preconceito" de "discriminação". Para ele, somente esta última pode ser penalizada, porque ofende a isonomia das condições e oportunidades das pessoas. Em relação ao preconceito, Lázaro disse ser um termo mais "complexo", por ser uma opinião formada antes do debate público.

Uma das autoras do pedido para a realização do seminário foi a deputada Fátima Bezerra (PT-RN), que aprovou emenda para garantir recursos para o programa Escola sem Homofobia, da ABGLT, aplicar neste ano. "Uma das responsabilidades do Congresso Nacional neste momento é garantir recursos para ações que acabem com o preconceito contra qualquer tipo de pessoa", declarou. Para o deputado Paulo Rubem Santiago (PDT-PE), tão importante quanto garantir recursos é dar visibilidade ao problema. "Se não houver visibilidade, fica impossível aplicar a política pública adequada", disse.

As pérolas de Rita





























































26 de out. de 2009

"Não é um diploma que tira uma pessoa da miséria"

Candido Mendes


Por Annie Nielsen, do Rio de Janeiro

A frase sintetiza o pensamento do advogado e professor Candido Mendes sobre a visão de que a educação seria o remédio de todos os males. No seu entender, a educação precisa integrar uma pauta maior de políticas de desenvolvimento para o país. Com base em anos de trabalho como educador e intelectual atento ao panorama educacional, Candido Mendes discorre com segurança sobre política de educação, estratégia de combate ao analfabetismo e impacto da internet sobre os jovens

Desafios - Os graves problemas de pobreza, miséria e falta de distribuição de renda têm como causa a falta de educação ou será o contrário: a pobreza é que condena as pessoas ao analfabetismo?

Mendes - A pergunta registra um dos estereótipos da subcultura brasileira, a mesma que, na década de 1920, achava que ou o Brasil acabava com a saúva ou a saúva acabava com o Brasil. A mesma visão de subcultura está na noção segundo a qual a educação tem o condão mágico de resolver os problemas que, afinal de contas, são problemas do subdesenvolvimento e envolvem um fato social total, um grande número de correlações e a necessidade de um ataque simultâneo a todos esses pontos de vista. Enquanto se considerar que a educação é a fonte de todos os bens e sua ausência a explicação do progresso de todos os males, ainda estaremos numa clássica subcultura do desenvolvimento. Isso me parece muito importante para se entender a necessidade de uma tomada de consciência para mudança.

Desafios - Prevalece um discurso segundo o qual a educação é o remédio para todos os problemas do Brasil. Mas se todos os brasileiros forem para as faculdades, não ficaremos com milhões de doutores desempregados? Será que um diploma vai tirar a pessoa da miséria?

Mendes - Isso é o famoso apólogo do "advogado-taxista" e um pouco consequência da primeira pergunta. O problema é vencermos, ao mesmo tempo, como marca dessa subcultura, a noção de que a universidade é um ótimo educacional em todos os pontos de vista. Não podemos nos esquecer que, mesmo dentro da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio), o ideal de uma formação universitária não chega a mais de 15% do extrato de população ligada a uma mesma definição etária. No entanto, conforme veremos numa discussão no final deste ano e início do próximo, o Brasil não chegou nem aos 8,5%. Os números são modestos e, evidentemente, não é um diploma que tira uma pessoa da miséria, e sim uma política educacional cada vez mais vinculada ao realismo de uma estratégia de mudança e da mobilidade do desenvolvimento.

Desafios - Quando se fala em educação, logo vem sempre a reclamação de falta de recursos. Não há também problema de gestão, de professores com poucos alunos?

 

Mendes - Acredito que haja uma política de apoio crescente à educação. Observamos um aumento de recursos muito claro entre 2007 e 2008; passamos de 4,5 bilhões para mais de 9 bilhões em 2008, o que mostra um claro fortalecimento do ensino médio e a busca da formação do nível médio. O grande problema é que a educação média, não universitária, continua vivendo da dificuldade do obstáculo constitucional, de responsabilidade dos estados, o que torna difícil computar ou definir o acompanhamento desses recursos que são determinados por pressupostos estaduais e segundo uma política de dispersão e de clientela que a União não pode necessariamente controlar.

Muitas vezes, porém, a questão da educação também não se limita a aumento ou pobreza de recursos. A produtividade da educação não está efetivamente definida. O que eu quero com isso é: qual a proporção ideal da relação entre professor e aluno? Uma ratio normal entre professor e aluno no ensino superior deve fica entre 30 e 40 alunos, no máximo 50, para se evitar a massificação dentro da sala de aula.

Também temos de analisar não apenas a quantidade de recursos, mas a administração deles, sobretudo com respeito à oferta do ensino. Enfrentamos um problema ainda muito constante do "mandarinato acadêmico", que é a dificuldade das universidades públicas em oferecer cursos noturnos pela comodidade professoral. Existe uma condição improdutiva de oferta de educação. Nesse caso, o ensino privado supre uma lacuna imensa.

Desafios - O ensino superior privado atende a um número maior de alunos hoje em dia?

Mendes - De 2000 a 2007, o número de estudantes no ensino privado chamado lucrativo, ou seja, as universidades que ganham com a educação, aumentou de 324 mil para mais de 1 milhão. Nas não-lucrativas, também conhecidas como filantrópicas, passou de 1 milhão 453 mil estudantes para cerca de 2 milhões e trezentos mil no mesmo período. Trata-se de um aumento de 74% em sete anos. Hoje, 65% do ensino superior são providos pelo ensino privado. Isso é um dado que as pessoas às vezes esquecem: o domínio privado no ensino superior brasileiro.

Desafios - O pagamento de mensalidades é um fator que pesa para muitos alunos que desejam cursar uma universidade. Como enfrentar esse entrave?

Mendes - Há as bolsas do Prouni e do Fies, mas ainda estão muito vinculadas à noção do empréstimo público, através do Banco do Brasil e da Caixa Econômica. Nós, das universidades privadas, queremos propor um empréstimo mais amplo. Queremos criar um sistema pelo qual o aluno pague uma parte da mensalidade, mas só comece a ser cobrado os outros 50% um ou dois anos depois de formado e provavelmente já com esse quantum incorporado na carteira de trabalho. E para evitar o problema do embaraço de financiamento, que ainda está muito burocratizado no sistema de crédito público, as universidades privadas se dispõem a avalizar esses créditos. À universidade privada interessa que esse aluno estude e pague a sua metade. Apostamos que ele vá pagar depois de formado. E temos também a constante de que tanto mais ele venha da classe B, ou da classe C, mais pontual ele é nos pagamentos.

Desafios - Seria possível ampliar o número de alunos na universidade com um sistema de empréstimo mais amplo?




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25 de out. de 2009

Uma segunda Grande Depressão ainda é possível


Thomas I. Palley da Fundação Lauro Campos via Carta Maior
Qui, 15 de outubro de 2009 13:56
Crise econômica
Ao longo do ano passado a economia global experimentou uma contração massiva, a mais profunda desde a Grande Depressão dos anos 30. Porém, nesta primavera, os economistas começaram a falar em "green shoots"1 de retomada e essas afirmações otimistas rapidamente se espalharam por Wall Street. Mais recentemente, no aniversário da quebra do Lehman Brothers, o presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, abençoou oficialmente esse consenso, ao declarar que a recessão estará "encerrada muito brevemente". 

O futuro é fundamentalmente incerto, o que faz com que a prática de predições sempre seja um empreendimento temerário. Isso quer dizer que há uma boa chance de o novo consenso estar errado. Em vez disso, há bases sólidas para acreditar que a economia dos EUA experimentará uma segunda queda, seguida por prolongada estagnação que será qualificada como a segunda Grande Depressão. Algumas indicações desse efeito já podem ser percebidas na inesperada ampliação das perdas de postos de trabalho nos EUA em setembro, e a queda na venda de automóveis nos país segue o fim do programa "Cash for Clunkers"2.

Que esse cenário rosa de pensamento tenha retornado a Wall Street não deveria surpreender. Wall Street lucra com o aumento do preço dos títulos, sobre os quais acarreta taxas de gerenciamento, ganha com a negociação para recomendá-los e com o encorajamento de retenção de investimentos para comprar ações que estimulam as transações. Esses ganhos são muitíssimo maiores quando as ações do mercado estão em alta, o que explica a propensão genética de Wall Street a pressionar a economia. 

Quanto aos economistas mainstream, seus modelos teóricos foram ofuscados pela crise e eles só predizem a recuperação por conta dos compromissos declarados nos seus modelos. De acordo com a teoria mainstream, está dado que o pleno emprego é um ponto de gravidade em relação ao qual a economia está recuada. 

Modelos de econometria empíricos são igualmente questionáveis. Eles também predizem a recuperação gradual, mas que seja dirigida por critérios de reversão de tendências observadas em dados passados. O problema, como dizem os investidores profissionais, é que "o desempenho anterior não é critério para o desempenho futuro". A crise econômica representa a implosão do paradigma econômico que comandou o crescimento estadunidense e global ao longo dos últimos trinta anos. Esse paradigma estava baseado no aumento do consumo estimulado pelo endividamento e pela inflação dos preços das ações, e se foi. 

Há uma lógica simples para explicar por que a economia experimentará uma segunda queda. Essa lógica repousa na desaceleração que produz, inevitavelmente, um castigo em duas etapas. A primeira já está em curso e provocou a crise financeira que causou a pior recessão desde a Grande Depressão. A segunda apenas começou. 

A desaceleração pode ser entendida através de uma metáfora na qual um carro simboliza a economia. Emprestar é como pisar no acelerador e acelerar a atividade econômica. Quando o empréstimo pára, o pé se afasta do pedal do acelerador e o carro diminui a velocidade. Contudo, agora o motor do carro está sobrecarregado pela acumulação de débito, de modo que a atividade econômica diminui em comparação com o nível anterior. 

Com a desaceleração, as economias domésticas aumentaram a liquidação e negociação de dívidas. Essa é a segunda etapa e é como pisar no freio, o que faz com que a economia desacelere ainda no nível de uma queda dupla. A rápida desaceleração, como a que está acontecendo agora, é equivalente a pisar no freio com força. O único aspecto positivo é que isso reduz o endividamento, o que é quase a mesma coisa que remover peso da máquina. Isso ajuda a estabilizar a atividade num nível mais baixo, mas não acelera o carro como dizem os economistas. 

Infelizmente a metáfora do carro só dá conta parcialmente das condições atuais, à medida que defende que o processo de desaceleração na economia é estável. Ainda, já houve uma crise financeira e a economia real está agora infectada por um processo multiplicador causando gastos mais baixos, perda massiva de empregos e falências comerciais. Essa desaceleração a mais cria a possibilidade de uma queda em espiral que constituiria uma depressão. 

Essa espiral é capturada pela metáfora do Titanic, que foi pensado para ser impecável devido aos seus próprios tabiques sequencialmente estruturados. Contudo, esses tabiques não tinham teto, e quando o Titanic bateu no iceberg que danificou seu lado, os tabiques da frente se encheram d'água e se renderam. A água, então, agitou os tabiques da popa, causando o naufrágio do navio. 

A economia dos EUA bateu num iceberg de endividamento. O dano resultante ameaça o fluxo dos mecanismos de estabilização da economia, que o economista Hyman Minsky chamou de - "thwarting institutions" [algo como "instituições de anulação"].

O seguro desemprego não está no topo de sua magnitude e está expirando para muitos trabalhadores. Isso projeta na sequência uma redução dos gastos e o agravamento do problema das hipotecas. 

Os Estados estão limitados pelas exigências de equilíbrio fiscal e estão cortando gastos e empregos. Consequentemente, o setor público está jogando o setor privado em contração. 

A destruição das economias domésticas significa que muitos lares estão no limite ou com saldo negativo em seus orçamentos. Isso aumenta a pressão para salvar e bloquear o acesso a empréstimos que podem dar o impulso inicial da recuperação. Mais ainda, tanto as economias domésticas como o setor comercial enfrentam bancarrotas extensivas, que amplificam o choque multiplicador de perdas e também limitam a atividade econômica futura ao destruir históricos de crédito3 e o acesso ao crédito.

Por último, os EUA continuam a sangrar através da tripla hemorragia de déficit comercial, que drena os gastos via importações, trabalho de imigrantes ilegais e investimentos desregulados. Essa hemorragia ficou evidenciada no programa "Cash for Clunkers", no qual oito em cada dez veículos dos mais vendidos eram de marcas estrangeiras. Consequentemente, mesmo enormes estímulos fiscais teriam seu efeito reduzido.

A crise financeira criou uma onda de retornos nos mercados financeiros. Uma desaceleração sem paralelo e o processo multiplicador repercutiu de modo adverso na economia real. Esse é um retorno dificílimo de ser revertido, o que explica por que uma segunda Grande Depressão permanece uma possibilidade real. 

Thomas Palley é pós-doutorado em Economia pela Universidade de Yale, e criador da organização não-governamental Economics for Democratic & Open Societies (Economia para Sociedades Abertas e Democráticas)

Página do autor: http://www.thomaspalley.com

1 N.deT. Em economia, a expressão "green shoots' pode ser uma queda nos números do desemprego, uma subida nas vendas no varejo ou na confiança do consumidor. Tudo isso representa pontos de partida para o crescimento econômico depois de uma recessão. Agora, se de fato está em curso essa retomada a partir da verificação desses índices é uma outra questão. in: http://www.davemanuel.com/investor-dictionary/green-shoots/
2 N.deT. O programa "Cash for Clunkers", em tradução livre "Dinheiro para Carroças", do governo federal estadunidense é um programa de subsídios para a aquisição de automóveis novos, a título de estímulo fiscal para a retomada do crescimento econômico. Os proprietários de automóveis podiam receber subsídios para trocar seus carros por novos na ordem de quase 5 mil dólares, desde que os carros em via de aquisição fossem mais eficientes na relação entre aproveitamento de combustível e custo do mesmo. Esse programa, durante um período, estimulou as vendas do setor, mas estaria, conforme afirma o autor do artigo, sem apresentar resultados satisfatórios, no momento. 

3 N.deT. Sobre o conceito de histórico de crédito, ver:http://en.wikipedia.org/wiki/Credit_history 

Tradução: Katarina Peixoto

23 de out. de 2009

Mobilidade sobre duas rodas

Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho


Nos últimos dez anos, enquanto o PIB brasileiro cresceu a uma taxa média anual em torno de 4%, a venda de motocicletas cresceu a uma velocidade 5 vezes maior (19% ao ano). Essa taxa de crescimento é ainda muito superior àquelas apresentadas pela indústria automobilística, que também vem passando por uma fase pujante nesse período (9% a.a.), e pelos próprios sistemas de transporte público urbano, que apresentaram uma redução no volume de passageiros transportados em relação à década passada. Tudo isso vem alterando profundamente o padrão de mobilidade das cidades brasileiras.

Vários fatores contribuíram para os resultados expressivos da indústria de motos, com destaque para a ampliação do crédito, que permitiu às pessoas de baixa renda acesso a linhas de financiamento com prazos maiores, juros menores e cobertura total do bem. Além disso, destacam-se os incentivos fiscais que essa indústria recebe para se estabelecer na Zona Franca de Manaus - alguns contestados atualmente em função da instalação de novas fábricas chinesas que utilizam peças importadas e não geram empregos localmente -, a consolidação dos serviços de transporte de cargas e passageiros sobre duas rodas e, finalmente, a deterioração do trânsito urbano nas cidades brasileiras, que prejudica o transporte público e torna o seu usuário um potencial comprador de uma motocicleta.

As próprias revendedoras de motos descobriram esse filão de mercado, direcionando o seu marketing de vendas de motocicletas de baixa cilindrada (maior mercado) para atingir os usuários de ônibus, alegando que o valor da prestação do financiamento de uma moto é semelhante ao gasto deles com passagens. Nesse contexto, o encarecimento das tarifas de transporte ocorrido nos últimos 15 anos contribuiu para esse processo.

O Brasil aos poucos vai se aproximando do caótico padrão de mobilidade asiático, onde os veículos de duas rodas (e três rodas) se tornaram a base da matriz modal. A previsão é de que até 2012 sejam comercializadas mais motos no Brasil do que carros, acirrando os conflitos no trânsito.

Mas quais as consequências desse novo padrão oriental de mobilidade urbana que está se desenhando no país? A principal externalidade é o aumento da mortalidade no trânsito. Segundo dados da Pesquisa do Ipea/ANTP sobre custos de acidentes de trânsito (2003), entre 6% e 7% dos acidentes com automóveis nas amostras pesquisadas produziu vítimas, enquanto essa proporção oscilou entre 61% e 82% nos acidentes com motos.

Essa grande propensão à geração de vítimas em acidentes envolvendo motocicletas, oriunda das próprias condições de insegurança do veículo, que não oferece proteção adequada a seus ocupantes e também da forma agressiva de condução do veículo por grande parte dos seus usuários, provoca um aumento da mortalidade a uma taxa superior ao crescimento da frota. No ano de 1996, houve menos de 700 mortes por usuários de motocicleta, enquanto em 2006 esse número subiu para mais de 7.000 mortes, taxa 6% maior do que a do crescimento da frota, apesar da vigência do novo Código de Trânsito Brasileiro, muito mais rígido desde 1997. A frota de motocicletas hoje no Brasil representa menos de 20% do total de veículos em circulação, mas responde por mais de 25% do total de mortes por acidentes de trânsito.

Para agravar a situação, o presidente Lula acaba de sancionar a Lei 12.009/2009, que regulamenta o serviço de mototáxi, proibido até então. Com essa medida, estima-se que as estatísticas de mortes no trânsito irão aumentar bastante, em função do envolvimento de mais uma vítima na ocorrência de acidentes.

Outra externalidade negativa decorrente do padrão asiático de mobilidade é o aumento da poluição sonora e atmosférica nos centros urbanos. A transferência de usuários do transporte coletivo para o individual por si só já é suficiente para gerar maior poluição. No caso das motocicletas, a situação tornase ainda pior em função dos altos índices de emissão de poluentes e ruídos. Estima-se que com as tecnologias atuais um usuário de moto emita mais de 12 vezes monóxido de carbono do que um usuário de ônibus urbano. Somente agora, 20 anos depois dos primeiros limites de emissões para automóveis e veículos comerciais terem sido estabelecidos, o Conama começou a estabelecer limites de emissões para as motocicletas, o que atrasou o desenvolvimento de tecnologias mais limpas.

Os desafios de mobilidade urbana enfrentados hoje pelos gestores públicos são grandes. As facilidades oferecidas para aquisição de veículos privados pela população, em especial as motocicletas, que hoje podem ser compradas até mesmo em supermercados, são muitas e acabam por reduzir a eficiência e competitividade do transporte público. Da mesma forma que o país precisa de políticas que promovam o desenvolvimento industrial, e que de fato contribuam para a redução das assimetrias regionais, deve haver também preocupação em se implantar políticas que mitiguem as externalidades negativas causadas pelos modos individuais de transporte e que sejam capazes de promover um padrão de mobilidade mais sustentável para as cidades brasileiras.

21 de out. de 2009

A Urna Esquecida

              Para o pequeno André Filipe

Já em ti se repete, pequeno sonho,
o ritmo antigo do dia e da noite
e das horas que vêm preencher
a urna esquecida.

Não caminhas ainda
e já teus braços anseiam

enquanto no espaço profundo
-que espraias com olhos de sono-
o tempo se devora a si mesmo.

E tens sobre ti
o céu
para admirar mil vezes
e a pergunta sem fim do Quando.

Dos teus lábios,
prontos para o dia,
se entreabrem azuis
o doce e grave balbucio
e teu sorriso
adoça a tarde distante.

Fonte de todo espanto,
este céu te acompanha.

E, porque te viu nascer,
tu o verás renascer
a cada novo dia
e tentarás galgá-lo
sempre que tuas mãos
se agitarem na sombra.

O ser que és, nuvem ou sonho,
flutua no ar como um girassol.
E da distância que nos aguarda,
ouve:
contemplarás esse azul sem termo
e o terás para sempre.



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20 de out. de 2009

Alma de ribeirinho


Os que nasceram nas grandes metrópoles, com seus brinquedos eletrônicos e suas esquinas concretas, defenderão as ruas asfaltadas, o clube do fim de semana e a solidão do computador. Os que nascem na beira de um rio, porém, queremos fazer ver as vantagens e os privilégios da infância livre, entre águas, peixes e canoas.

Até hoje, e lá se vão mais de trinta anos, até hoje, eu ainda sonho com o rio Mearim do fundo de meu quintal. Vez por outra, acordo com a doce sensação de um banho quente em suas águas. E quantas vezes sonhei com a casa alagada pela enchente,pescando piaba, sobre um jirau de tábuas! O menino ainda não sabia reconhecer a responsabilidade dos adultos e o sofrimento dos alagados mais pobres. Só pensava em banhar no meio da rua e pescar... Outro dia, eu sonhei um sonho surrealista (conseqüência, decerto, de alguma refeição mal digerida). Parecia que o rio se transformava numa larga avenida, com carros anfíbios e bicicletas que subiam e desciam nas águas...

Eu nasci na beira do rio, na casa sete, cuja rua leva o nome de um antepassado. Aprendi a nadar com meu avô, Nestor Fernandes, que tinha um método pedagógico um tanto excêntrico: jogava-nos no meio do rio para que perdêssemos o medo da água. É claro que era uma forma dele se divertir também, mas eu retive a lição realística: ou aprende a nadar ou morre afogado!

A primeira namorada eu conheci banhando de canoa nas manhãs de domingo. Folgávamos nas canoas, os rapazes, com a maré cheia e batida de maracujá, enquanto as meninas, de biquíni, iam em outras canoas tomando banho de sol. Foi um amor idílico e sincero. Provocou minha inclinação romântica e me fez ler toda a obra de José de Alencar...

A primeira transa, também, alguns anos adiante, foi com a inspiração do rio. Mas, é claro, não era tão bom como as boas pescarias de surubim! Ah! Nada supera um peixão na linha, brigando desde o meio do rio até a beira! A educação pela paciência e o orgasmo da fisgada: perfeito!

Além disso, as desilusões, os desencantos, as melancolias da juventude eram testemunhadas pelas plácidas águas do entardecer. O dourado nas pequenas ondas; o vento brevíssimo; os pássaros buscando em algaravia o agasalho das grandes árvores; o amarelo queimado do sol no horizonte se pondo entre as copas das mangueiras e a curva do rio. Eu nunca vi um pôr-do-sol tão bonito quanto o de Arari, capaz de reunir para mim, a beleza natural e a simpatia da saudade.

Quando ficávamos bêbados, íamos curar a ressaca nas águas do rio. Uma vez, com os hormônios malogrados, fomos terminar a madrugada banhando pelados na “barragem”. O delegado não soube, nem o Pe. Brandt. Era um outro tempo. Hoje, as ressacas são outras e, talvez, estejamos tentando curá-las em outras águas, nas águas turvas da linguagem.



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19 de out. de 2009

Por que o Brasil não cresce?

Para quem ainda não leu: o estudo sobre a Dívida Pública de Amilton Aquino já está na oitava edição.




São Francisco

Oração de São Francisco na voz de Ney Natogrosso.
Não encontrei nenhum cantor que fizesse uma interpretação tão verdadeira.
Ouçam:


***



18 de out. de 2009

Homenagem a Benedito Nunes


 via Revista Brasileiros edição 25

Em um de seus encontros com Benedito José Viana da Costa Nunes, em Belém do Pará, Clarice Lispector lhe disse: "Você não é um crítico, mas algo diferente, que não sei o que é". A escritora tinha razão ao demonstrar a dificuldade em rotular a obra do paraense que, nas palavras do professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo, Antônio Cândido, representa um tipo muito raro de intelectual, capaz de ser "um grande crítico literário e, ao mesmo tempo, um filósofo".

Nascido em 21 de novembro de 1929, o professor, filósofo, crítico e ensaísta Benedito Nunes define seu trabalho como "um tipo mestiço das duas espécies, a filosofia e a literatura". "Tento, dessa forma, fazer a ligação entre os dois campos, porém sem nivelar ou diminuir um ou outro, mas mostrar as suas correlações, afinidades e oposições", diz Nunes, que está bem perto de comemorar 80 anos de vida, mas de preferência em silêncio, no lugar em que mais gosta de ficar, sua biblioteca, sentindo o perfume dos livros. "Não gosto de parabéns, acho horrível, cafona."


Considerado um dos maiores pensadores do Brasil, Nunes se classifica como "um autodidata e eterno aprendiz, sempre em busca de novos olhares". Durante sua da carreira, especializou-se em analisar obras de grandes escritores, como Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger. Por seu trabalho intelectual, recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 1987 (na categoria Estudos Literários, com Passagem para o Poético - Filosofia e Poesia Heidegger), pela Câmara Brasileira do Livro, e o título de Professor Emérito da Universidade do Pará, em 1998.


Apesar de ter sua obra reconhecida e elogiada por muitos, Nunes sempre foi avesso a grandes badalações, preferindo ficar recluso em sua terra natal, o que talvez explique o fato de seu nome não ser tão conhecido nacionalmente. "Belém é meu canto. Sou um pouco animal, gosto da minha toca. Belém é minha concha existencial, sempre foi." A maneira que o paraense escolheu para viver o diferencia da maioria dos intelectuais. "O mais notável é que Benedito Nunes pertence a um tipo muito característico de intelectual brasileiro: o que não renuncia à sua província. Ele é um pioneiro ao acreditar que os núcleos de conhecimento devem ser desenvolvidos em vários pontos do Brasil, em várias universidades, em vez de se concentrar apenas nas faculdades famosas", afirma o crítico Antonio Cândido.


De família de intelectuais, Nunes nasceu um mês depois da morte de seu pai, o bancário Benedito da Costa Nunes. O filósofo aprendeu o abecedário no Colégio Sagrado Coração de Jesus, que funcionava dentro da sua própria casa, onde tinha aulas com a professora Theodora da Cruz Vianna, a Dodô, uma de suas cinco tias. "Era um 'coleguinha' muito bem frequentado, pessoas ilustres passaram por lá", relembra.


15 de out. de 2009

Entrevista com Wilson Cano

Por Jorge Luiz de Souza, de Campinas

Desafios - Como o Brasil poderá passar do subdesenvolvimento para o desenvolvimento?
Cano - A saída do subdesenvolvimento é uma coisa praticamente impossivel, dado que o subdesenvolvimento nao é uma "etapa" do desenvolvimento, mas sim um processo criado pelo próprio desenvolvimento capitalista, em áreas que eram já povoadas, porém tinham relações pré-capitalistas. Celso Furtado mostra que foram muito raros os países que, além daqueles que se desenvolveram no âmbito da Revolução Industrial, trilharam o caminho do desenvolvimento: a antiga Uniao Soviética, que resolveu o problema com a coletivização dos meios de produção; a China, que, antes desse crescimento recente, conseguiu sustentar as necessidades básicas de 1 bilhão de pessoas; a Índia, que também tem 1 bilhão; e a Coréia do Sul, pela razão de ter sido um dos poucos "países convidados" pela potência hegemônica, os Estados Unidos, a ingressar no mercado internacional. Há muito poucos convidados. Depois da revolução da China, a Coréia do Sul foi tratada para servir de vitrine. O resto ficou no subdesenvolvimento. Furtado tinha o cuidado de chamar de subdesenvolvido de grau inferior e superior, e nós até que éramos os de maior grau, porque tínhamos montado um parque industrial de porte expressivo e bastante diversificado - era o oitavo parque industrial do mundo capitalista.

Desafios - O que nos mantém subdesenvolvidos?
Cano - No nosso percurso histórico, tivemos também os nossos golden years, os "anos de ouro", que grosso modo se pode demarcar de 1930 a 1980, tendo pelo meio uma ou outra crise, como o suicídio de Vargas, em 1953, ou em 1962 e 1967. Fora isso, foi uma taxa de crescimento fenomenal, uma das mais altas do mundo. O país se industrializou, diversificou a estrutura produtiva e principalmente se urbanizou. Em 1920, 80% da população vivia no mato e só 20%, nas cidades. Ao final dos anos 1980 se tinha exatamente o contrário, com 80% nas cidades e 20% no mato. Urbanizamos este país em uma velocidade ciclópica. Daí, não adianta imputar tudo ao desgoverno, à falta de planejamento, à incúria, à incompetência, à corrupção. Por melhores que pudessem ter sido os nossos governos, no que tange à urbanização, teríamos sofrido esse impacto. A urbanização aflora muita coisa boa, mas aflora também muita coisa ruim, como as deficiências de saneamento, de saúde pública, de escolas, de transporte coletivo, de habitação, e sua seqüela - a doença pública que é a insegurança. Mas é claro que muito mais coisas boas poderiam ter sido feitas por nossos governos, notadamente os do regime militar, em termos sociais.

Desafios - Urbanização rápida foi o maior obstáculo?
Cano - Fora a questão do endividamento, sim. Não estou com isso querendo livrar os governantes da época, porque houve realmente muito descaso, principalmente no regime militar, para com as questões sociais. Nos anos 1980, entramos em um verdadeiro pesadelo - crise da dívida, crescimento pífio, endividamento crescente, balanço de pagamentos explodindo, inflação crônica. E, a partir de 1990, mergulhamos no oceano da economia neoliberal, iniciada com Fernando Collor, ampliada com Itamar Franco, aprofundada com Fernando Henrique Cardoso e em grande medida mantida pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva no que diz respeito principalmente às políticas macroeconômicas. Não são governos idênticos, são semelhantes no que tange a isto, mas são responsáveis por manter uma política macroeconômica de corte neoliberal, que foi e continua sendo cruel para o Brasil. Após uma "década perdida", o país chegou ao final dos anos 1980 debilitado, enfraquecido, desmantelado. Aconteceu com as finanças públicas, o aparelho do Estado e as empresas públicas, que, para combater a inflação, foram obrigadas a aceitar preços insuficientes, o que comprometeu seus investimentos. Era como o sujeito subnutrido que pega uma gripe. Está lascado.

Desafios - Isto não está mudando agora?
Cano - Graças a Deus, parece que agora tem mais gente enxergando a nulidade dessas políticas. Na crise dos anos 1980, inicia o desmantelamento do Estado nacional, o Ministério do Planejamento se converteu em uma repartição pública que elabora o orçamento e algumas normas de gestão. O próprio Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que era um centro pensante, de certa forma se burocratizou, se individualizou em termos de produção de pesquisas. Antes, fossem planos de desenvolvimento ou programas setoriais, produzia as coisas coletivamente, e muito boas. Não estou querendo dizer que o nível de qualidade baixou, estou dizendo que se individualizou o trabalho, recortou, atomizou os esforços do Ipea. Tomara que agora eles possam ser, de alguma forma, ressuscitados, recriados, revitalizados. É preciso ter visões particularizadas, porque também são fundamentais, mas tem de haver a visão global, senão não se move o país.

Desafios - Os anos 1990 também se perderam?
Cano - Os anos 1990 foram um desastre. O fato objetivo é que as privatizações não resolveram a questão de dívida, pelo contrário. Os preços públicos não baixaram, pelo contrário, subiram de 1994 para cá, e o Estado perdeu segmentos e empresas da maior relevância para praticar a política nacional de desenvolvimento econômico e para executar parte de uma política regional de desenvolvimento. Por exemplo, a Vale do Rio Doce era uma empresa absolutamente estratégica nesses dois sentidos. Hoje, o governo não pode dizer para a Vale que faça isso ou faça aquilo porque ela é privada. Então, se perdeu um elemento. Ainda bem que a Petrobras foi salva da privatização. Imagine, nessa crise de petróleo agora, se nós também tivéssemos privatizado a Petrobras. Mas se aprofundou o desmantelamento do Estado nacional. Às vezes, temos vários ministérios fazendo exatamente a mesma coisa, propondo políticas parecidas, só que um vem para cá e outro vai para lá.

Desafios - Onde estão hoje os objetivos nacionais?
Cano - Ninguém sabe. As coisas são difusas, como "aceleração de crescimento". Enfim, não se tem uma coordenação nacional de objetivos e não se sabe o que se quer, concretamente. Pode-se ter ótimos estudos setoriais, sobre produtividade, disto ou daquilo, mas não se tem nenhuma coesão, nenhuma costura com o todo nacional. Sem pensar no contexto nacional, é impossível fazer política setorial, política regional ou política temática eficiente e séria. Seja uma política para o setor siderúrgico, seja para o Nordeste brasileiro, seja uma política temática de distribuição de renda, é preciso haver coesão nacional de idéias. Temos de regionalizar as decisões nacionais com sabedoria e responsabilidade, e não da forma como é feita agora: abre-se a fronteira de produção e subsidia-se a infraestrutura com gasto público, além do estímulo real ao desmatamento. A política regional foi simplesmente substituída ou pela expansão da fronteira agrícola e mineral - o que não tem nada a ver com decisões de política regional ou nacional porque isso é demanda internacional - ou pela guerra fiscal, que cresceu escandalosamente. Então, se desconcentraram de São Paulo mais de 40% do setor automotriz e 70% do setor eletrônico, mas foi por guerra fiscal e não por uma política eficiente.


14 de out. de 2009

Francisco de Oliveira diz que Lula é pior que FHC


Em artigo na revista Piauí, Francisco de Oliveira, sociólogo e fundador do PT, avalia os governos de Lula e constata que vivemos ainda a era FHC.
Ora, o eminente sociólogo deveria reconhecer que a capitulação do PT representa apenas o fracasso da utopia de sua geração ( que é a minha também) e a manutenção hegemonia do pensamento burguês que se fundamenta em dólar e em dívida.
Eu, que gosto de FHC
(& gosto de Lula & gosto de Sarney & gosto de meninos &meninas - por motivos diferentes, é claro!),
reconheço que ele não tinha poder político para bancar as mudanças que sempre desejou:
Os resultados são o oposto dos que o mandato avalizava. O eterno argumento dos progressistas-conservadores - caso, entre outros, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - é que faltaria, às reformas e ao reformista-mandatário, o apoio parlamentar. Sem sustentação no Congresso, o país ficaria ingovernável. Daí a necessidade de uma aliança ampla. Ou de uma coalizão acima e à margem de definições ideológicas. Ou, mais simplesmente, de um pragmatismo irrestrito.
O certo é que FHC queria fundar a burguesia nacional, a quem serve, ainda hoje, (“fundar” pode ser hiperbólico, certo?) e, por isso, privatizou tudo:
Houve então o interregno de Fernando Collor, que tinha voto, mas não tinha voz, e de Itamar Franco, que não tinha nem voto nem voz. E então chegou o progresso mesmo, em pessoa, adornado com os títulos e as pompas da Universidade de São Paulo. Fernando Henrique Cardoso realizou o que nem a Dama de Ferro tinha ousado: privatizou praticamente toda a extensão das empresas estatais, numa transferência de renda, de riqueza e de patrimônio que talvez somente tenha sido superada pelo regime russo depois da queda de Mikhail Gorbachev.
Sim, transferência de renda! Isso é grave. Acho que FHC ampliou o hiato, (que Lula, ingenuamente, pensa que o está diminuindo...) entre ricos e pobres.
Medidas indiretas sugerem, e na verdade comprovam, o crescimento da desigualdade: o simples dado do pagamento do serviço da dívida interna, em torno de 200 bilhões de reais por ano, contra os modestíssimos 10 a 15 bilhões do Bolsa Família, não necessita de muita especulação teórica para a conclusão  e que a desigualdade vem aumentando. Marcio Pochmann, presidente do Ipea, que continua a ser um economista rigoroso, calculou que uns 10 a 15 mil contribuintes recebem a maior parte dos pagamentos do serviço da dívida. Outro dado indireto, pela insuspeita - por outro viés - revista Forbes - já linha pelo menos dez brasileiros entre os homens e mulheres mais ricos do mundo.
Vê?
O Lula, orgulhoso pelo “fim” da Dívida Externa, exultante com a “incalculável” transferência de renda de seu governo; o Lula - ingênuo metalúrgico nordestino e reencarnação de D. João, continua a enriquecer os ricos em proporção muito maior do que despobretiza os pobres...
Ora, o governo Lula, na senda aberta por Collor e alargada por Fernando Henrique, só faz aumentar a autonomia do capital, retirando às classes trabalhadoras e à política qualquer possibilidade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrática. Se fhc destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação
As classes sociais desapareceram: o operariado formal é encurralado e retrocede, em números absolutos, em velocidade espantosa, enquanto seus irmãos informais crescem do outro lado também espantosamente. Em sua tese de doutorado, Edson Miagusko flagrou, talvez sem se dar conta, a tragédia: de um lado da simbólica Via Anchieta, no terreno desocupado onde antes havia uma fábrica de caminhões da Volks, há agora um acampamento de sem-teto, cuja maioria é de ex-trabalhadores da Volks. Do outro lado da famosa via, sem nenhuma simultaneidade arquitetada - aliás, os dois grupos se ignoraram completamente -, uma assembleia de trabalhadores ainda empregados da Volks tentava deter a demissão de mais 3 mil companheiros. Eis o retrato da classe: em regressão para a pobreza. De são Marx para são Francisco.
As classes dominantes, se de burguesia ainda se pode falar, transformaram-se em gangues no sentido preciso do termo: as páginas policiais dos jornais são preenchidas todos os dias com notícias de investigações, depoimentos e prisões (logo relaxadas quando chegam ao Supremo Tribunal Federal) de banqueiros, empreiteiros, financistas e dos executivos que lhes servem, e de policiais a eles associados.
Sim, o velho e quase sempre lúcido Francisco de Oliveira acerta em cheio ao temer que a luta política se transforme em uma luta de gangues: "a novidade do capitalismo globalitário é que ele se tornou um campo aberto de bandidagem".

11 de out. de 2009

Amilton Aquino estuda a dívida pública 1


O Brasil se encheu de orgulho em 2005, quando a mídia noticiou o fato histórico da quitação da dívida brasileira com o FMI, ainda mais com dois anos de antecipação. O presidente Lula, como sempre, capitalizou ao máximo tal evento (coincidentemente às vésperas das eleições), aproveitado a ocasião para manifestar sua intenção de emprestar dinheiro ao FMI. “Vocês não acham chique? O Brasil agora vai emprestar dinheiro ao FMI?”, perguntou o presidente aos jornalistas em tom de campanha e de deboche. O fato histórico ajudou Lula a diminuir o impacto da crise do PT pós-mensalão, contribuindo para sua reeleição no ano seguinte.
Mesmo percebendo o objetivo eleitoral do Governo na antecipação da quitação da dívida, a oposição teve que se calar diante de um fato simbólico e tão importante para a auto-estima do povo brasileiro. Mesmo assim, algumas vozes dissonantes na “Imprensa Golpista” questionaram o esforço do Governo em apressar a liquidação de uma dívida que cobrava juros de apenas 4% ano, enquanto que, ao mesmo tempo, o Tesouro continuava a pagar juros superiores a 13% ao ano da Dívida Interna.
O outro lado da história
No mesmo ano do badalado pagamento da dívida com o FMI, o Governo fez diversas operações no mercado financeiro para capitalizar recursos em troca de títulos da dívida brasileira. Além de US$ 4.49 bilhões em títulos da dívida brasileira no exterior, o Governo trocou C-Bonds por A-Bonds no valor de US$ 4,4 bilhões e antecipou o lançamento de US$ 3,5 bilhões em títulos da dívida externa que estavam programados para o ano seguinte. Traduzindo o “economês”, o governo pediu emprestado ao mercado financeiro um total de US$ 12,4 bilhões, um valor bem próximo aos US$ 16 bilhões pagos ao FMI. Ou seja, o governo juntou o valor dos empréstimos com a parcela da dívida programada para o ano de 2005 e criou o factóide da quitação do FMI. Na prática, o governo trocou uma dívida com juros de 4% ao ano por outra com juros entre 8% e 13%.
O mar das dívidas
Assim como os rios correm para o mar, todos os “títulos” vendidos pelo Governo no mercado financeiro são incorporados às dívidas interna e externa. Desde o governo FHC estas movimentações têm se concentrado na dívida interna, a qual não pára de crescer. Abaixo um gráfico divulgado pela Auditoria Cidadã da Dívida que mostra sua evolução nos últimos anos.
Evolução da Dívida Interna Brasileira
Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida
Embora os dados de 2008 e 2009 ainda não tenham sido computados na tabela, sabe-se que hoje a dívida é ainda maior, pois ainda esta semana a imprensa divulgou que o Governo Federal não conseguiu nem o mínimo necessário para pagar os juros da dívida. Procuramos dados atualizados nos sites do Banco Central e do Ministério da Fazenda, mas não encontramos um gráfico como este, com valores totalizados. Existem duas planilhas relativas à série histórica das dívidas internas e externas iniciadas em 1995, mas as tabelas são tão confusas que fica difícil se chegar a uma conclusão real dos números. A tabela mostra uma enxurrada de números referentes a juros e encargos sem uma totalização final. Tentamos totalizar alguns dados, mas os números não corresponderam aos dados divulgados pelo governo, segundo o qual a dívida interna estaria hoje em torno de 1,46 trilhão de Reais.
A ausência de informações sobre este tema na web mostra como o brasileiro dá pouca atenção ao problema das dívidas públicas, as quais consomem hoje a maior parte dos recursos arrecadados pelo governo.
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Oficialmente, o governo gastava até 2007 30,7% do orçamento com juros e amortizações da dívida pública. Quando computados os recursos emitidos para o refinanciamento das dívidas este percentual sobe para 53,21%. Com a deteriorização das contas públicas verificadas nos últimos dois anos, certamente este percentual hoje é ainda maior. Abaixo, um gráfico que mostra o drama da divisão do orçamento em 2007.
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Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida
Vale ressaltar que no último ano do governo FHC, o percentual do orçamento gasto com o pagamento de juros e amortizações foi de 45,16%, oito pontos percentuais inferior ao que o governo atual gastou já em 2007, um dos anos mais “brilhantes” do governo Lula.
Traduzindo o “economês”, o refinanciamento da dívida significa renovar as dívidas vencidas com novos prazos e juros, naturalmente. Em outras palavras, significa jogar a responsabilidade para o próximo governo. Tal mecanismo tem se repetido ao longo das últimas décadas com as dívidas externa e interna. A lógica dos governos é a seguinte: não importa o valor da dívida, o que importa é seu percentual em relação ao Produto Interno Bruto – PIB (a soma de todas as riquezas produzidas pelo país).  Por este ângulo, o governo Lula se gaba hoje de ter uma dívida interna correspondente a 43% do PIB, valor inferior ao pico de 1998, quando este percentual chegou a 55% no auge da seqüencia de crises internacionais do segundo governo FHC.
Por esta lógica, o governo atual teria ainda 12% de margem para se endividar, pois o parâmetro é sempre o governo FHC. Ou seja, não importa se a dívida da época era de 645 bilhões e hoje é de 1,45 trilhões. O que importa é capacidade do governo em “honrar seus compromissos”, mesmo que estes consumam mais da metade do nosso orçamento.
É com este pensamento que o Governo programa a emissão de títulos das dívidas (novos empréstimos). A antecipação do lançamento dos títulos que serviram para “pagar” a dívida do FMI é apenas um exemplo de como o governo programa seus orçamentos. Em outras palavras, a “emissão de títulos” tornou-se uma das fontes de recursos do Governo, principalmente nos períodos pré-eleitorais.
Poderia ser diferente?
Sim. O governo Lula teve seis anos e meio de crescimento mundial acelerado e sem crises. Poderia ter iniciado uma trajetória de queda dos juros que implicaria na redução dos encargos da dívida interna. A queda dos juros só veio a ocorrer na crise financeira mundial a partir do segundo semestre de 2008, como um antídoto contra a recessão. Caso o Brasil tivesse cortado os juros pela metade nos anos anteriores, o governo federal teria economizado mais de 500 bilhões em pagamentos de juros e amortizações.
A alegação do Governo para não baixar os juros sempre foi o medo da volta da inflação. O argumento foi válido no Governo FHC, caracterizado pelos esforços de estabilização da moeda em meio a um cenário internacional turbulento e de transição. No Governo Lula, no entanto, tal argumento perdeu totalmente o sentido com a estabilização cada vez maior da moeda e da desvalorização do Dólar.
Mais uma contradição
Ao revelar sua disposição em emprestar dinheiro ao FMI, o governo Lula faz exatamente aquilo que criticava quando oposição. Ao passar da condição de devedor à credor do FMI, na prática o governo Lula se coloca na posição de explorador dos países aos quais o FMI vai emprestar nosso dinheiro.