Uma reflexão sobre cinema e as cenas que mais me impactaram
I. A Dupla Natureza do Cinema Comercial
Todo produto artístico busca resultados de potência: seja para elevação da vaidade, seja para elevação da conta bancária. O mercado cinematográfico comercial tem a vantagem singular de obter ambas simultaneamente. Esta característica dual do cinema - como arte e como produto - estabelece desde o início uma tensão fundamental que permeia toda a discussão sobre sua função social e estética. Diferentemente de outras formas artísticas que podem manter certa pureza em relação ao mercado, o cinema nasceu já inserido na lógica industrial, o que determina tanto suas possibilidades quanto suas limitações.
II. A Industrialização da Arte Cinematográfica
O capitalismo se apropriou do cinema como mais um produto industrial e o inseriu na forma de produção em série, estudando todos os mecanismos necessários para garantir a qualidade suficiente ao lucro. Esta transformação não foi acidental, mas resultado de um processo sistemático de racionalização da produção artística. O cinema, por sua natureza técnica e seu alto custo de produção, tornou-se particularmente suscetível a essa lógica industrial, diferenciando-se de artes como a literatura ou a pintura, que podem manter maior independência em relação aos grandes investimentos de capital.
III. A Padronização Narrativa e o Empobrecimento Estético
A conversão da narrativa literária em roteiro cinematográfico, sob a perspectiva do lucro, exige necessariamente a inclusão de aspectos normativos já exaustivamente estudados pelos estruturalistas (vide "A Metamorfose do Conto", semiótica do discurso, etc.). Por isso são tão entediantes as produções orientadas exclusivamente ao lucro - Hollywood, Netflix, Amazon - sempre repetindo fórmulas: o romance anódino, o predomínio da ação sobre a reflexão, os diálogos pretensamente inteligentes mas calibrados apenas para alcançar o público médio. Esta padronização representa não apenas um empobrecimento estético, mas uma forma de controle ideológico que limita as possibilidades de pensamento crítico através da arte.
IV. A Estrutura Tayloriana da Indústria Cinematográfica
A indústria cinematográfica desenvolveu-se como uma estrutura genuinamente tayloriana, com departamentos altamente especializados: fotografia (agora subordinada à manipulação digital), roteiristas trabalhando segundo estruturas fixas preestabelecidas - criar "novidade" ou "renovidade", ativar emoções baratas como medo, raiva ou compaixão. Estes profissionais, pressionados pelas demandas do mercado, frequentemente empobrecem a narrativa literária quando fazem adaptações de romances. Não existe entretenimento verdadeiramente inocente; o vetor do lucro sempre resulta em alguma forma de dominação de classe, ainda que disfarçada sob o verniz do entretenimento.
V. A Negação da Dimensão Transcendental
Aos filmes comerciais, como ocorre com o próprio modelo de produção capitalista, não interessa a dimensão transcendental da arte - aquela que promove a elevação da inteligência e a fruição genuína da beleza. A indústria, seja do cinema ou da tecnologia (como a Apple), não se preocupa com a beleza em si; o design segue sempre a orientação emocional mais barata e imediatamente comercializável. Esta negação do transcendental representa uma perda cultural significativa, pois priva a sociedade de uma de suas principais fontes de desenvolvimento espiritual e intelectual.
VI. O Cinema Poético e Seus Paradoxos
Os filmes que transcendem a dimensão comercial e priorizam a linguagem poética conseguem oferecer uma gama de significados muito maior que os filmes comerciais, tornando-se, paradoxalmente, altamente perigosos para o sistema e destinados a um número cada vez menor de pessoas - geralmente intelectuais já "solidamente vendidos ao sistema". Esta contradição revela um dos dilemas centrais da arte contemporânea: quanto mais sofisticada e crítica, menor sua capacidade de alcançar as massas que mais se beneficiariam de sua mensagem transformadora.
VII. A Questão da Recepção e da Consciência de Classe
Convém lembrar que a imensa maioria dos espectadores (incluindo muitos cinéfilos) são de origem operária e, portanto, carecem de ferramentas para "ler" a narrativa profunda dos filmes. Existem filmes explicitamente revolucionários produzidos por Hollywood que passam despercebidos; o público usufrui apenas a descarga emocional, a catarse da "droga" audiovisual. Esta situação evidencia como a própria estrutura educacional e cultural da sociedade capitalista impede que a arte cumpra sua função crítica e transformadora.
VIII. As Limitações do Cinema "Artístico"
Os filmes orientados para a arte também não são livres no sentido estrito: sabendo que não alcançarão as massas, são financiados "por quem pode pagar" e acabam presos aos artifícios ideológicos de uma elite culta mas impotente. Esta dependência cria um círculo vicioso onde a arte mais sofisticada se torna cada vez mais elitizada, perdendo sua capacidade de interferir na realidade social mais ampla.
IX. O Caso Tarkovsky: Arte e Poder Estatal
Tarkovsky exemplifica esta complexidade: produziu para a nascente nação socialista, e embora existam teses de que trabalhava contra a corrente oficial, deve-se considerar que foi aceito pelo Comitê de Cinema para um nicho específico de produção cinematográfica, fora da propaganda explícita da revolução. Por quê? Porque havia necessidade de filmes sofisticados que alcançassem intelectuais ocidentais simpáticos à causa socialista, identificando nesses filmes um padrão artístico superior à mediocridade comercial dominante. Ele produzia para uma elite governamental culta que desejava contrapor-se à arte ocidental, não sendo, portanto, um contrarrevolucionário no sentido puro.
X. A Perspectiva Operária e o Controle Ideológico
É esclarecedora a observação do operário que, após ler "Em Busca do Tempo Perdido" de Marcel Proust, comenta: "Stalin matou foi pouco". Esta frase, aparentemente brutal, traduz uma compreensão profunda: o cuidado revolucionário com todos os mecanismos ideológicos capazes de influenciar a consciência da classe operária deve ser rigoroso e constante. A arte, longe de ser neutra, constitui sempre um campo de batalha ideológica.
Reflexões sobre Cenas Cinematográficas Marcantes
1. A Metáfora do Espelho e do Tempo
Em um filme sobre uma advogada negra bem-sucedida que procura sua mãe biológica, há uma cena em que a mãe passa longo tempo se arrumando diante do espelho antes do encontro. Envolta neste ato aparentemente simples está todo um sofrimento revivido. A força da cena reside na capacidade do diretor de criar uma metáfora precisa e terrível da solidão humana e do peso do envelhecimento, transformando um gesto cotidiano em revelação existencial.
2. Os segredos da família
No filme francês sobre uma família de ladrões (possivelmente "Segredos de Família"), os pais planejam um grande roubo (usarão urina de tigre para afastar os cachorros da mansão a ser assaltada), enquanto enfrentam problemas com a Assistência Social, mandando a filha pré-adolescente para um convento. A cena crucial ocorre quando a menina retorna suja e esfarrapada, alegando ter sido molestada pelas freiras - mentira que revela ao irmão mais velho para poder voltar para casa. A resposta dele ("você já é uma mocinha") e o pedido dela (“então coce minhas costas...”) criam uma tensão perturbadora que resulta na revelação que o jogo sexual entre os irmãos avançaria para novos parâmetros.
3. A Tragédia Feminina em "Munique"
A cena mais impactante ocorre quando os agentes do Mossad encontram uma colaboracionista do atentado de Munique de 1972.Quando eles chegam e começam a atirar com pistolas disfarçadas em canetas, ela está seminua num sofá, assistindo TV. As balas são pequenas demais para a matarem imediatamente, mas ela entende a inevitabilidade do momento, e, por isso, se levanta e abre o roupão… Eu não me lembro de ter chorado tão intensamente em público. A pobre mulher tentou seduzir os agentes, enquanto recebia os tiros. Aquela cena expunha a dimensão trágica da mulher: a beleza, a inutilidade e a morte. Aquela mulher, com desespero contido, usando a beleza como arma contra a morte inevitável, me pareceu uma metáfora perfeita da dor feminina.
4. A Cura pela Palavra
A precisão de Gus Van Sant em registrar a "cura psicológica" em "Gênio Indomável" (Good Will Hunting), quando Robin Williams desarma Matt Damon até as lágrimas, demonstra como o cinema comercial pode, ocasionalmente, atingir profundidade genuína. A cena funciona porque transcende o melodrama fácil, baseando-se na verdade psicológica da relação terapêutica.
5. O Gesto de Resistência Romântica
Peter Weir, em "Sociedade dos Poetas Mortos", cria um momento emblemático quando o protagonista aluno, vence a timidez e sobe na carteira em solidariedade ao professor demitido (Robin Williams). A maioria dos colegas o acompanha sem hesitar, mas o último aluno hesita, identificando a possível pieguice do ato, antes de decidir participar. Esta hesitação revela a tensão entre o romantismo juvenil e o ceticismo da maturidade, questionando sutilmente os próprios gestos que o filme parece celebrar.
Essas cenas demonstram que mesmo dentro dos constrangimentos da indústria cinematográfica, momentos de verdadeira revelação artística podem emergir, criando fissuras no discurso dominante e oferecendo vislumbres de uma compreensão mais profunda da condição humana.