“Ouçam, céus, e, terra, abra as orelhas que Yahweh falou"
(Isaías, 1,2)
O Oriente Médio era o lugar, culturalmente, mais rico da Antiguidade. Ponto de cruzamento da influência dos primeiros impérios, de civilizações letradas e complexas (egípcios, mesopotâmios, hititas, fenícios, lídios), passagem obrigatória de mercadorias entre a Ásia e o mundo mediterrâneo, a chamada Ásia Menor (Turquia, Síria, Líbano, Israel, países árabes) foi a pátria de algumas das maiores “conquistas” da humanidade.
A começar pelo alfabeto, invenção dos mercadores fenícios, a partir dos hieroglifos egípcios.
A moeda, também, nasceu aí, na Lídia, hoje, parte da Turquia. Nessa região, porém, não nasceram só inovações materiais. Nela, surgiram os mitos mais fundantes que informam o imaginário do Ocidente até hoje.
Essa parte do globo, afinal, foi berço do judaísmo, do cristianismo e do Islam, as religiões de Moisés, Jesus e Maomé.
Não nos deixemos iludir pelas aparentes diferenças entre essas três confissões religiosas, nem por seus conflitos históricos. Com variantes de detalhes, as três afirmam, no fundo, os mesmos princípios: o tribal monoteísmo patriarcalista, o moralismo
fundado em regras estritas, a tendência ao proselitismo expansionista, a intransigência.
“Não haverá outros deuses diante de ti”, parecem dizer as três, afirmando Javé, Jesus e Alá.
Trata-se, como se percebe, de uma religiosidade semita, de beduínos dos desertos e oásis da Arábia, como foram, a princípio, hebreus, babilônios, assírios, arameus e árabes, pastores nômades de ovelhas, dispondo do cavalo, do camelo e do dromedário como instrumentos de transporte.
Os primeiros semitas a se sedentarizarem em centros urbanos estáveis, constituindo civilizações, foram os babilônios, os assírios e os fenícios. O comércio e as guerras fizeram o resto, tornando o Oriente Médio um nó górdio de influxos cruzando de todas as partes: mercadorias, principalmente. Mas, também, idéias. Instituições. Conceitos. Mitos. Jesus é parte dessa história.
Como se conhece Jesus?
Tudo que se sabe dele nos chegou através de coletâneas de textos conhecidos pelo nome grego de “Evangelhos”, literalmente, “boa mensagem”, palavra que, claro, Jesus nunca conheceu. Era um judeu da Galiléia, falante do aramaico, um dialeto semita, aparentado ao hebraico, a língua corrente na Palestina, depois do cativeiro da Babilônia (quando viveu, o hebraico já era, há séculos, apenas, o idioma sagrado dos textos religiosos, uma língua morta, portanto).
Em seu mundo sobrepunham-se três idiomas: o aramaico do povo, o grego das classes cultas das grandes cidades da Ásia e o latim do dominador romano.
De grego e latim, certamente, Jesus nunca soube uma palavra.
Suas parábolas, frases e ditos memoráveis foram formulados
em aramaico, esse dialeto semita, menos conciso que o hebraico, mas que chegou a ser língua comum em todo o Oriente Médio (até a correspondência da chancelaria assíria saía em assírio e aramaico).
Como Buda e Sócrates, Jesus não deixou nada escrito.
Tudo que sabemos dele nos foi reportado por esses
evangelhos, que nos chegam da Igreja Primitiva, depois que comunidades judaico-cristãs se espalharam por todas as grandes metrópoles helênico-romanas do Mediterrâneo (Éfeso, Antióquia, Mileto, Tessalônica, Tarso, Alexandria, Roma).
São textos tardios (o Evangelho de João deve ter tido sua redação final, mais ou menos, cem anos depois da morte de Jesus). Houve centenas de evangelhos. Cada Igreja local devia ter o seu. Fora quatro dentre eles, canonizados pela Igreja, quando esta se organizou como poder, os demais evangelhos foram condenados e negligenciados. Seus textos só chegaram até nós fragmentariamente. Ou através de vagas notícias dos escritores cristãos dos três ou quatro primeiros séculos da nossa era. São os apócrifos, o Evangelho dos Hebreus, o Evangelho dos Doze ou dos Ebionitas, o Evangelho dos Adversários da Lei e dos Profetas, o Evangelho de Pedro, o Evangelho da Perfeição e outras coletâneas perdidas ... Os evangelhos ditos canônicos atribuem-se a Mateus, Marcos, Lucas e João, discípulos diretos ou discípulos dos discípulos de Jesus.
São textos escritos em grego. Não o grego de Platão ou dos grandes escritores da Atenas de quatro séculos atrás.
É um grego meio popular, conhecido como koinê (= “comum”), o grego que se tornou língua franca em todo o Oriente depois da conquista do Império Persa por Alexandre da Macedônia, língua de mercadores e administradores, falado por fenícios, judeus, persas, lídios, cilícios, e, naturalmente, romanos.
Nenhum evangelho é em aramaico. Jesus já se nos aparece traduzido. Tradição muito antiga quer que o evangelho atribuído a Mateus tenha sido escrito, originalmente, em língua semita, hebraico ou aramaico. Os evangelhos de Mateus e Marcos parecem, com efeito, representar uma camada mais antiga da
tradição do que os textos de Lucas e João, visivelmente, elaborações posteriores da Igreja (ou das igrejas) já organizadas litúrgica e teologicamente.
Ao que tudo indica, o de Marcos talvez seja o mais antigo de todos, seu autor, um judeu convertido, vivendo numa comunidade romanizada, talvez, na própria Roma. Seu aproach é o mais popularesco de todos. Em Marcos, Jesus é sobretudo um taumaturgo, um fazedor de milagres, curando a lepra, a febre, a paralisia, a cegueira e expulsando demônios dos possessos.
E a parte propriamente doutrinária, em Marcos, (o pensamento, digamos assim, de Jesus) é sempre expressa numa imagética muito material, ligada ao mundo físico das classes populares da Galiléia.
Já em João, são atribuídas a Jesus teorizações teologicamente tão complexas que sempre se suspeitou, nelas, influências da filosofia grega tardia, desenvolvida nos círculos mais cultos de Alexandria, no Egito, a capital intelectual do Mediterrâneo de então.
Como se vê, estamos lidando com uma documentação heterogênea, advinda de várias fontes, frequentemente contraditórias.
Como achar o verdadeiro Jesus por trás dessa floresta de versões sobre sua pessoa, feitos e ditos?
Parece óbvio que os evangelhos representem a compilação de tradições transmitidas oralmente no interior da (s) igreja (s) primitiva (s), “feitos e ditos do Senhor”, passados de boca a boca, de orelha a orelha, evidentemente, ampliados e deformados pela imaginação oriental, tão afeita a prodígios.
O próprio caráter fragmentário e descosturado dos evangelhos, enquanto textos, confirma essa hipótese.
Os episódios evangélicos são ligados, praticamente, pela conjunção “e”, o que faz deles uma obra aberta, onde outros episódios poderiam ser insertados, sem dano do conjunto.
“E Jesus disse”. “E Jesus foi”. “E Jesus veio”.
Não resta, porém, a menor dúvida de que, por trás desses ditos e feitos, existiu uma pessoa real, de carne e osso, um rabi da Galiléia, que mudou o mundo como poucos.
A ser verdade tudo o que dizem os Evangelhos, não há nenhum personagem da antiguidade sobre qual saibamos tanto quanto sobre Jesus. Infância, família, formação: detalhes mínimos, que não temos sobre Péricles, Sócrates, Alexandre, César, Augusto, Cícero ou Virgílio.
O impacto que sua vida e doutrina provocaram nos contemporâneos atingiu tal intensidade que, hoje, ainda, vibra.
Talvez, ser Deus seja, apenas, isso.