2 de jun. de 2009

Não Violência Ativa: Um Modo de Vida

RICHARD DEATS

Quando Martin Luther King Jr. foi para o seminário, acreditava que a mensagem de Jesus ajudava as pessoas a se tornarem indivíduos amorosos, compassivos, honestos, corajosos, pacientes e gentis. Mas não entendia como tais qualidades pessoais poderiam ser relevantes no tocante aos grandes males sociais do seu tempo: racismo, guerra, opressão, injustiça. Ele então estudou Gandhi e o movimento de libertação da Índia. Ali encontrou, em grande escala, um movimento de libertação que resistiu ao maior império daquele tempo usando métodos consistentes com o caminho da verdade e do amor. King depois escreveu que o indiano Gandhi mostrou a ele que sua incredulidade em relação ao poder do amor era infundada. "Vim a perceber pela primeira vez que a doutrina cristã do amor, operando pelo método gandhiano da Não-Violência, era uma das armas mais poderosas disponíveis para os povos oprimidos em sua luta pela liberdade: "Gandhi demonstrou de forma poderosamente atual as implicações do Sermão da Montanha". Gandhi ensinou que Deus é Verdade e a Verdade é Deus, e que a natureza do poder está fundada na Verdade mesma. Gandhi intitulou sua autobiografia de "Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade", e nela escreveu que: "Para as pessoas de boa vontade o único nome de Deus é Verdade".

Os tiranos e opressores temem a verdade, por isso constroem seu poder sobre mentiras, golpes, censura e violência. A arma mais poderosa que os pobres e oprimidos possuem para lutar não é o uso maior nem mais ardiloso da violência, nem mentiras em contra-ataque, nem propaganda, mas a Verdade mesma. O mal pode ser vencido com aquilo que Gandhi chamava de satyagraha. Satya é a verdade que se equipara ao amor. Graha é força. Satyagraha é a força da verdade ou a força do amor. Hoje o termo não-violência vem sendo usado no lugar de satyagraha. Antes de Gandhi o movimento de libertação da Índia era subterrâneo, marcado por ódio, assassinatos e bombardeios.

Gandhi transformou a luta pela liberdade num movimento aberto, que diz a verdade, não-violento. Leis opressivas e autoridades cruéis eram confrontadas com ações corajosas, marcadas pela verdade e pelo amor. Enfrentar o ódio e a violência com ódio e violência é tornar-se igual ao inimigo. O sofrimento não merecido por parte do seguidor da Verdade é fonte de redenção. Gandhi ensinava que não se deve trabalhar por uma causa nobre através de meios condenáveis, pois os meios e os fins estão interligados assim como a semente e a árvore. Para construir a sociedade sem classes ou para obter um crescimento rápido do produto interno do país, o terror e a repressão parecem ser justificáveis. Não, dizia Gandhi. "Se cuidamos dos meios, o fim cuidará de si mesmo... Sempre temos controle sobre os meios, nunca sobre os fins. "Martin Luther King Jr. descobriu o poder das percepções de Gandhi na luta pelos direitos civis. Descobriu que Gandhi havia penetrado no coração mesmo da mensagem de Jesus: o sofrimento por amor e a Cruz.

Isto contrasta muito com o cristianismo popular que fala de Jesus, mas ignora Sua mensagem. O cristianismo é popularmente apresentado como uma doutrina em que se deve acreditar ao invés de um caminho de amor a ser vivido. A Bíblia não diz que "O verbo se tornou palavras". Diz que "O Verbo se fez carne". Ser um seguidor de Jesus significa viver uma vida de amor e levar a cruz. King via a cruz como "o poder de Deus para a salvação individual e social". "Amar o inimigo", "dar a outra face", "andar a segunda légua", "vencer o mal com o amor" eram ensinamentos de Jesus para um povo oprimido que vivia sob o jugo cruel do Império Romano. King ajudou os negros oprimidos a enxergarem que esta mensagem era dirigida a eles também. Juntos eles cantavam "We shall Over come" (Nós Venceremos). E venceram! Balas e jatos de água, cães policiais e cassetetes elétricos não conseguiram detê-los. Suas igrejas foram queimadas, e suas casas bombardeadas. Eles perderam seus empregos e foram levados para a cadeia. Mas permaneceram fiéis ao seu compromisso com a não violência. Descobriram que a verdade e o amor eram mais fortes que qualquer coisa que o inimigo pudesse fazer contra eles.

Gandhi e King nos ensinaram a olhar de modo novo para a natureza do poder. Muitos pensam erroneamente que o poder vem da violência, e que pode ser derrotado somente por violência maior. Gandhi disse que "A força não vem da capacidade física, mas de uma vontade indomável". A justiça da causa indiana deu ao seu povo uma vontade mais forte que o poderio bélico britânico. O professor Gene Sharp, em sua obra de treze volumes A Política da Ação Não-Violenta, diz que a essência do poder não está no poderio militar, mas no povo. Ele é governado pelo Estado até o ponto em que aceita cooperar com o Estado. O Estado perde seu poder quando o povo retira ou diminui sua cooperação. Como escreveu Jose Rozal, o grande patriota Filipino: "Não há escravidão onde não houver escravos dispostos a servir". Sharp prossegue, examinando a não-violência como método para resistir ao mal e sobrepujar a injustiça.

Embora Gandhi e King sejam os mais famosos expoentes da não-violência, Sharp procura exemplos de não-violência na história e encontra numerosos casos de: protestos, persuasão, não-cooperação e intervenção não-violentos. Ele documentou 198 métodos específicos de não-violência, e defende a tese de que são formas exeqüíveis e práticas de lidar com a opressão ¯ mesmo desconsiderando a base religiosa para a não-violência de Gandhi e King. Sharp mostra como pessoas comuns, que não eram pacifistas nem santos, usaram a ação não-violenta e "passaram a ganhar salários mais altos, quebraram barreiras sociais, mudaram políticas governamentais, frustraram invasões, paralisaram um império e dissolveram ditaduras". Quais são esses métodos? Somente alguns tipos representativos serão mencionados aqui, para sugerir a variedade e o escopo da não-violência.  

INVESTIGAÇÃO:

Ao combater a injustiça, a simples revelação da verdade – sobre mentiras governamentais, brutalidade policial, ou leis injustas, por exemplo – pode ser tremendamente poderosa. Nada afugenta a escuridão como a luz, nada enfraquece a falsidade como a verdade. A investigação cuidadosa e honesta ajuda a divulgar a verdade para um grupo maior de pessoas. Mesmo as vítimas diretas podem às vezes desconhecer a extensão de sua opressão antes que seja feita uma coletânea séria dos fatos. Richard Nixon tinha grande poder antes da investigação de Watergate erodir esse poder. A Glasnost (transparência) pôs a público a censura e mentiras que vinham sendo usadas no bloco soviético e acelerou o fim do controle totalitário. 

EDUCAÇÃO:

Para que a investigação tenha sucesso, a notícia deve se espalhar para um círculo cada vez maior de pessoas. A educação não vem apenas da sala de aula e dos livros; pode vir de um evento, um folheto ou uma palavra falada que comunica a verdade. Quando reinava a lei marcial nas Filipinas, um boletim religioso chamado Signs of the Times documentou questões importantes que não saíam nos jornais. Quando o boletim foi cassado pelo governo, outro boletim, com nome diferente,apareceu. Quando os exemplares chegavam ao correio, antes mesmo de serem postados, eram passados de mão em mão. Quando finalmente este boletim teve que parar de ser publicado, um bispo continuou o trabalho através de suas cartas pastorais periódicas.
 NEGOCIAÇÃO: 
Devemos tentar negociar um acordo para uma questão sempre que possível. Todas as possibilidades devem ser tentadas. Se houver qualquer parte da lei na qual possamos nos apoiar – por exemplo, a lei trabalhista – ela deveria ser a base de negociações. Os africanos-americanos na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos não recorreram a boicotes e ocupação de lugares reservados aos brancos antes de terem se esforçado ao máximo para negociar um acordo. A negociação com uma padaria do Mississipi fracassou e seus produtos foram boicotados. Por fim a padaria se mostrou disposta a contratar africanos-americanos e a negociação se tornou viável e, por fim, bem sucedida. 
BOICOTE: 
O boicote é uma forma muito poderosa de desafiar uma situação injusta. Neste tipo de ação cada indivíduo pode fazer a sua parte, e se desejar, continuar anônimo. Gandhi liderou um boicote às roupas de origem britânica, e promoveu o renascimento dos tecidos feitos a mão, o que ajudou de forma marcante para que os indianos ganhassem autoconfiança. O United Farm Workers (Sindicato dos Trabalhadores Rurais), o sindicato dos trabalhadores mais explorados dos Estados Unidos, conseguiu que milhões de norte-americanos e europeus boicotassem a alface, e depois de alguns anos, venceram a batalha desigual contra fazendeiros ricos e poderosos. 
DEMITIR-SE: 
Pedir demissão para não participar de um sistema injusto é uma forma de enfraquecer aquele sistema. Na Noruega durante a segunda guerra mundial milhares de professores demitiram-se de seus cargos para não ensinar pelos padrões nazistas. Toda a Suprema Corte resignou para não aplicar a lei nazista. Os bispos e pastores deixaram seus cargos na igreja estatal; continuaram suas atividades pastorais, mas não sob o controle das forças de ocupação. Em 1963 no Vietnam sob o jugo de Diem, 47 professores da Universidade de Hue exoneraram-se após ser demitido o reitor católico da universidade. O reitor havia sido demitido por apoiar a luta budista. 

PROCISSÕES RELIGIOSAS:

Em alguns lugares as passeatas são ilegais, mas as procissões religiosas permitidas. No Brasil uma fábrica foi construída às margens de um rio, e o lixo tóxico começou a matar os peixes. Os pescadores sofriam com isso e tentaram protestar, mas isso não foi permitido. Eles então foram assistidos por um padre, que os levou em procissão da igreja até a fábrica. Cada pescador levou um peixe morto e o depositou nos degraus da fábrica.* Richard Deats é diretor da FOR – atividades inter-religiosas dos Estados Unidos.Ele ministra workshops de não-violência ativa nas Filipinas, Corea do Sul, África do Sul, Hong Kong, Tailândia, nos Estados Unidos e na Rússia. Este artigo foi extraído de "Essays in Nonviolence", editado por Therese de Conninck.


 * Traduzido do original em inglês com a permissão de Fellowship of Reconciliation e Season for Nonviolence.[Tradução: Tônia Van Acker – Revisão Técnica: Lia Diskin, Associação Palas Athena]