3 de set. de 2009

Empirismo e filosofia da mente


Conhecer envolve, segundo Wilfrid Sellars, um processo inferencial e uma dimensão social.


José Renato Salatiel

(13/03/2009)

A obra Empirismo e filosofia da mente (Editora Vozes, 2008), de Wilfrid Sellars (1912-1989), é um dos marcos da filosofia analítica, uma das mais influentes escolas na Europa e, principalmente, nos Estados Unidos.

Apesar de curto, o ensaio de Sellars é denso e requer um leitor mais atento e dedicado, além de exigir certo repertório em história da filosofia, uma vez que o autor dialoga com correntes diversas.

A edição brasileira, entretanto, preservou a introdução de Richard Rorty (um dos mais importantes filósofos norte-americanos da atualidade), que contextualiza o trabalho, e os comentários de Robert Brandom, direcionados inicialmente para seus alunos dos cursos de graduação e pós-graduação na Universidade de Pittsburgh (EUA), onde Sellars também lecionou. Ambos os textos podem servir como fio de Ariadne nos labirintos argumentativos do filósofo.

Além disso, a importância de Sellars no pensamento contemporâneo, incluindo a filosofia da mente, é suficiente para recompensar o leitor mais obstinado. Mas qual é a contribuição deste pensador norte-americano para a filosofia? Para responder a questão, passaremos brevemente por alguns princípios básicos da filosofia analítica.

Teoria do conhecimento

Epistemologia é o ramo da filosofia que trata das teorias do conhecimento. Ela procura responder a perguntas como “O que é o conhecimento?”, “Como posso conhecer algo e em que condições?” e “Como posso obter um conhecimento verdadeiro e, ainda, saber se estou de posse de um?”.

Tradicionalmente, duas correntes da filosofia apresentaram soluções diferentes para o problema. Os racionalistas – René Descartes (1596-1650), Gottfried Leibniz (1646-1716) e Baruch de Spinoza (1632-1677), entre outros – desenvolveram sistemas que inseriam a metafísica no caminho seguro da matemática, fornecedora de conhecimento dedutivo e necessário. Enquanto os empiristas, como Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), viam na experiência, apesar de contingente, a única fonte de saber para o homem.

O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) superou as duas tendências com seu método transcendental. Pare ele, sem a luz da razão para nos guiar, tateamos cegos pelo mundo dos objetos. Por outro lado, a razão sem a experiência não tem conteúdo e, sem o peso das coisas e o lastro da realidade, sente-se livre para arriscados voos dogmáticos.

Tendo a crítica kantiana às metafísicas tradicionais como ponto de partida, a filosofia analítica emerge no âmbito da chamada “virada linguística” (linguistic turn), que substituiu uma perspectiva do conhecimento baseada na relação entre sujeito e objeto por uma compreensão centrada e amparada na linguagem, seja ela ordinária ou lógico-simbólica.

Deste modo, fez da filosofia, basicamente, uma análise do significado de conceitos, aliando, inicialmente, o transcendentalismo kantiano e o empirismo clássico britânico ao método oriundo da lógica de Gottlob Frege (1848-1925), considerado o “pai” da lógica moderna.

A filosofia analítica se origina pouco antes da Segunda Guerra Mundial, com o positivismo ou empirismo lógico, escola criada em torno do chamado Círculo de Viena, que reunia nomes como Moritz Schlick (1882-1936) e Rudolf Carnap (1891-1970).

Para eles, era essencial a distinção kantiana entre proposições analíticas e sintéticas. O critério de verificação para proposições analíticas é meramente dedutivo, como sentenças aritméticas, por exemplo. Já juízos sintéticos dependem de uma checagem empírica, isto é, de um confronto com a realidade. Proposições do tipo “Deus existe”, portanto, eram destituídas de sentido, porque não se pode provar empiricamente a existência de Deus.

Consequentemente, a tarefa da reflexão filosófica seria prover fundamentos empíricos para o conhecimento, reduzindo conceitos a dados dos sentidos (o chamado fenomenalismo). A proposição “A cadeira é verde” só teria sentido se fosse possível demonstrar, com base na intuição sensível (visão da “verdidude” da cadeira, por exemplo), que a cadeira é, de fato, verde.

Mito do dado

Os pressupostos iniciais do positivismo lógico foram abalados por três trabalhos seminais: Dois dogmas do empirismo (1951), de Willard V. O. Quine (1908-2000), que invalidou a distinção entre sentenças analíticas e sintéticas, Investigações filosóficas (1956), de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), cujo trabalho levou ao abandono do fundacionismo, e, finalmente, Empirismo e filosofia da mente, de Sellars.

O ensaio foi apresentado, inicialmente na forma de palestras, em 1956, nas Conferências Especiais em Filosofia, na Universidade de Londres, sob o título “O Mito do Dado: três conferências sobre empirismo e a filosofia da mente”.

O trabalho ficou conhecido, justamente, pelo “mito do dado”, em que o autor ataca a teoria dos dados dos sentidos, o cerne do fenomenalismo dos teóricos do Círculo de Viena. A teoria afirma ser possível fundamentar o conhecimento empírico nas impressões ou dados dos sentidos dos objetos e, desta maneira, obter saber não-inferencial sobre questões de fato.

Sellars aponta uma inconsistência no fato de se extrair fatos epistêmicos, do tipo “(eu sei que) a cadeira é verde”, de fatos não-epistêmicos – “Eu vejo a cadeira verde”. Há uma diferença em ter a sensação de uma cadeira verde e saber que é uma cadeira verde.

O ponto é que não se pode conhecer sem antes ter adquirido uma competência linguística. Conhecer envolve, diz Sellars, um processo inferencial e uma dimensão social que foi capturada, com competência, pelo conceito de “jogos de linguagem” do “segundo” Wittgenstein.

Além disso, a dificuldade de se saber que “A cadeira é verde” somente ao ter impressões do “verde” está no fato de que conhecer algo envolve uma consciência classificatória – isto é verde, aquilo é não-verde – e subsunção de particulares a classes gerais, como o termo geral “cadeira” que representa todas as cadeiras individuais. Envolve, em suma, conceitos e inferências.

É essa propriedade de se obter um conhecimento não-conceitual que Sellars rejeita e, existindo essa incoerência na teoria dos dados dos sentidos, não há como fundamentar o conhecimento empírico em dados sensoriais, pois o pré-requisito é o domínio de uma linguagem.

Linguagem e consciência

Sellars vai além ao afirmar que a linguagem é não somente prerrogativa de qualquer conhecimento como também da própria consciência. Estar consciente não é simplesmente ter sensações, mas possuir uma habilidade linguística. E, como a linguagem é um fenômeno social, a consciência e o conhecimento se esgarçam num processo coletivo e autoregulatório de aprendizagem.

Uma criança só pode desenvolver uma capacidade cognitiva quando adentrar, por via dos conceitos, o espaço normativo de razões, em que a comunidade de interlocutores se insere. Somente ali poderá justificar e se responsabilizar pelo que diz, pois “[...] dizer que certa experiência é um ver que algo é o caso é fazer mais do que descrever a experiência. É caracterizá-la, por assim dizer, como uma asserção ou afirmação, [...] endossar tal afirmação.”

Não há possibilidade de crença que não seja articulada conceitualmente e nem possibilidade de fundamentação de conhecimento empírico, uma vez que o processo é apenas regulador. Conforme diz Sellars, “[...] o conhecimento empírico, como sua sofisticada extensão, a ciência, é racional, não por ter uma fundação, mas por ser um empreendimento autoregulador que pode colocar qualquer afirmação em questão, embora não todas simultaneamente”.

Tais reflexões refutaram o verificacionismo e atomismo lógico dos positivistas, e também uma determinada ideia de mente compartilhada tanto por tradições empiristas como racionalistas.

São interessantes as confluências entre as propostas de Sellars e o fundador do pragmatismo, Charles Sanders Peirce (1839-1914), que no artigo Questões referentes a certas faculdades reivindicadas pelo homem, de 1868, fez a mesma trajetória e chegou a destino muito parecido. As proximidades entre os autores, já apontadas por Rorty, mostram que filósofos analíticos e pragmatistas talvez sejam mais do que meros vizinhos.

via Le Monde Diplomatique