26 de out. de 2009

"Não é um diploma que tira uma pessoa da miséria"

Candido Mendes


Por Annie Nielsen, do Rio de Janeiro

A frase sintetiza o pensamento do advogado e professor Candido Mendes sobre a visão de que a educação seria o remédio de todos os males. No seu entender, a educação precisa integrar uma pauta maior de políticas de desenvolvimento para o país. Com base em anos de trabalho como educador e intelectual atento ao panorama educacional, Candido Mendes discorre com segurança sobre política de educação, estratégia de combate ao analfabetismo e impacto da internet sobre os jovens

Desafios - Os graves problemas de pobreza, miséria e falta de distribuição de renda têm como causa a falta de educação ou será o contrário: a pobreza é que condena as pessoas ao analfabetismo?

Mendes - A pergunta registra um dos estereótipos da subcultura brasileira, a mesma que, na década de 1920, achava que ou o Brasil acabava com a saúva ou a saúva acabava com o Brasil. A mesma visão de subcultura está na noção segundo a qual a educação tem o condão mágico de resolver os problemas que, afinal de contas, são problemas do subdesenvolvimento e envolvem um fato social total, um grande número de correlações e a necessidade de um ataque simultâneo a todos esses pontos de vista. Enquanto se considerar que a educação é a fonte de todos os bens e sua ausência a explicação do progresso de todos os males, ainda estaremos numa clássica subcultura do desenvolvimento. Isso me parece muito importante para se entender a necessidade de uma tomada de consciência para mudança.

Desafios - Prevalece um discurso segundo o qual a educação é o remédio para todos os problemas do Brasil. Mas se todos os brasileiros forem para as faculdades, não ficaremos com milhões de doutores desempregados? Será que um diploma vai tirar a pessoa da miséria?

Mendes - Isso é o famoso apólogo do "advogado-taxista" e um pouco consequência da primeira pergunta. O problema é vencermos, ao mesmo tempo, como marca dessa subcultura, a noção de que a universidade é um ótimo educacional em todos os pontos de vista. Não podemos nos esquecer que, mesmo dentro da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio), o ideal de uma formação universitária não chega a mais de 15% do extrato de população ligada a uma mesma definição etária. No entanto, conforme veremos numa discussão no final deste ano e início do próximo, o Brasil não chegou nem aos 8,5%. Os números são modestos e, evidentemente, não é um diploma que tira uma pessoa da miséria, e sim uma política educacional cada vez mais vinculada ao realismo de uma estratégia de mudança e da mobilidade do desenvolvimento.

Desafios - Quando se fala em educação, logo vem sempre a reclamação de falta de recursos. Não há também problema de gestão, de professores com poucos alunos?

 

Mendes - Acredito que haja uma política de apoio crescente à educação. Observamos um aumento de recursos muito claro entre 2007 e 2008; passamos de 4,5 bilhões para mais de 9 bilhões em 2008, o que mostra um claro fortalecimento do ensino médio e a busca da formação do nível médio. O grande problema é que a educação média, não universitária, continua vivendo da dificuldade do obstáculo constitucional, de responsabilidade dos estados, o que torna difícil computar ou definir o acompanhamento desses recursos que são determinados por pressupostos estaduais e segundo uma política de dispersão e de clientela que a União não pode necessariamente controlar.

Muitas vezes, porém, a questão da educação também não se limita a aumento ou pobreza de recursos. A produtividade da educação não está efetivamente definida. O que eu quero com isso é: qual a proporção ideal da relação entre professor e aluno? Uma ratio normal entre professor e aluno no ensino superior deve fica entre 30 e 40 alunos, no máximo 50, para se evitar a massificação dentro da sala de aula.

Também temos de analisar não apenas a quantidade de recursos, mas a administração deles, sobretudo com respeito à oferta do ensino. Enfrentamos um problema ainda muito constante do "mandarinato acadêmico", que é a dificuldade das universidades públicas em oferecer cursos noturnos pela comodidade professoral. Existe uma condição improdutiva de oferta de educação. Nesse caso, o ensino privado supre uma lacuna imensa.

Desafios - O ensino superior privado atende a um número maior de alunos hoje em dia?

Mendes - De 2000 a 2007, o número de estudantes no ensino privado chamado lucrativo, ou seja, as universidades que ganham com a educação, aumentou de 324 mil para mais de 1 milhão. Nas não-lucrativas, também conhecidas como filantrópicas, passou de 1 milhão 453 mil estudantes para cerca de 2 milhões e trezentos mil no mesmo período. Trata-se de um aumento de 74% em sete anos. Hoje, 65% do ensino superior são providos pelo ensino privado. Isso é um dado que as pessoas às vezes esquecem: o domínio privado no ensino superior brasileiro.

Desafios - O pagamento de mensalidades é um fator que pesa para muitos alunos que desejam cursar uma universidade. Como enfrentar esse entrave?

Mendes - Há as bolsas do Prouni e do Fies, mas ainda estão muito vinculadas à noção do empréstimo público, através do Banco do Brasil e da Caixa Econômica. Nós, das universidades privadas, queremos propor um empréstimo mais amplo. Queremos criar um sistema pelo qual o aluno pague uma parte da mensalidade, mas só comece a ser cobrado os outros 50% um ou dois anos depois de formado e provavelmente já com esse quantum incorporado na carteira de trabalho. E para evitar o problema do embaraço de financiamento, que ainda está muito burocratizado no sistema de crédito público, as universidades privadas se dispõem a avalizar esses créditos. À universidade privada interessa que esse aluno estude e pague a sua metade. Apostamos que ele vá pagar depois de formado. E temos também a constante de que tanto mais ele venha da classe B, ou da classe C, mais pontual ele é nos pagamentos.

Desafios - Seria possível ampliar o número de alunos na universidade com um sistema de empréstimo mais amplo?




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Mendes - É importantíssimo que esse processo de acesso que o Prouni e o Fies tentaram começar entre no financiamento pela rede privada de ensino, com apoio dos próprios bancos privados. A população estudantil universitária anual no Brasil é de 4 milhões e 250 mil. Poderia passar para 5 milhões e 600 mil. Cerca de 1 milhão e 200 mil, 1 milhão e 300 mil estudantes ficam de fora. A grande tarefa é colocar esse 1 milhão e tanto dentro da universidade. Para isso, não basta o Fies e o Prouni. Precisamos de um sistema efetivo de financiamento em bases como a que o Forerj (Fórum de Reitores do Rio de Janeiro), que eu presido, levou ao governo e está em estudo nesse momento pelo MEC.

"Queremos criar um sistema pelo qual o
aluno pague uma parte da mensalidade, mas só
comece a ser cobrado os outros 50% um ou dois
anos depois de formado e provavelmente já com
essequantum incorporado na carteira de trabalho"



Desafios - Em algumas áreas há falta de profissionais qualificados e vagas de emprego sobrando. Na área de tecnologia da informação e comunicação, por exemplo, a Índia leva vantagem sobre o Brasil, porque os indianos falam inglês e também são bons em desenvolvimento de software. O que podemos fazer para termos profissionais mais qualificados?

Mendes - Em primeiro lugar, devemos estimular o acesso interdisciplinar ao conhecimento. Em geral, o professor se enrijece na superprofissionalização e especialização do seu conteúdo de comunicação. Em segundo, manternos atualizados e, em terceiro, termos consciência da relevância do conhecimento, sobretudo para uma sociedade em mudança como a nossa.

Essa pergunta também permite discutir uma questão que levo muito em consideração aqui, na Universidade Candido Mendes. Para preparar um profissional de conhecimento, ligado a mudanças, dentro de uma sociedade como a nossa, o mercado quer o quê? Uma hiperespecialização ou uma versatilidade dentro da adaptação a mudanças? Chegamos à conclusão, pelos nossos profissionais empregados, que, devido às velocidades das mudanças, cada vez mais é necessário um profissional versátil, em vez de um ultraespecializado.

Desafios - No Brasil, além de a população ser monoglota, há 14 milhões de analfabetos, sem falar nos "analfabetos" com diploma. A que se deve esse cenário?

Mendes - Eu me pergunto se a língua é um condicional fundamental de barreira ou de estímulo no mundo da internet. Trata-se de um mundo em que o acesso à informação já independe da questão da língua, no seu sentido mais importante, da palavra.

Atualmente, um dos dados mais importantes do avanço da educação no Brasil é a preocupação do governo em melhorar a qualidade do ensino. Eu falo do programa de formação de professores do MEC, o problema da mudança da estrutura da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e o novo programa do conselho técnico de cooperação pela educação básica. Há também o novo sistema nacional de formação de professores e um novo Enem que integra numa mesma prestação, numa mesma atividade, a formação de alunos e de professores.

Desafios - Como melhorar o nível dos docentes nas universidades?

Mendes - Convalescer e reforçar os regimes do tempo integral, que é a grande hora, o grande esforço. Manter e garantir o tempo de 40 horas, mas permitir que o professor só vincule 50% desse tempo à práxis. Os outros 50% têm que estar vinculados à atividade de acompanhamento monográfico de aluno e à publicação. O professor que não publica um determinado número de artigos em um período estabelecido deve perder a condição de 40 horas.

Desafios - O senhor é a favor do sistema de cotas nas universidades?

Mendes - Eu sou inteiramente a favor do sistema de cotas, mas tenho uma grande preocupação com respeito a elas. As cotas estão revelando um fenômeno inquietante sobre mobilidade social brasileira. Quando a pessoa tem que se reconhecer no quadrículo como preto ou pardo, ela não se reconhece. Cada vez mais eu tenho candidatos que preferem não ter bolsa a se reconhecerem como pretos ou pardos. Evidente que isso é um percentual limitado, mas é justamente por isso que se torna revelador.

Desafios - Os alunos cotistas sofrem alguma espécie de discriminação?

Mendes - No começo, temi que fossem discriminados, mas isso não aconteceu. Mas também porque não temos um excesso de alunos, não chegamos a uma compressão escolar. De modo que o estudo é flexível, ninguém está tirando o lugar de ninguém. Esse problema da cota existe na universidade pública. Na privada, em nome de todas que conheço, posso dizer que a discriminação não existe e o aluno não se sente discriminado.

Desafios - Todos concordam que é preciso investir em pesquisa para desenvolver o país. Mas como fazer isso de forma eficaz?

Mendes - Primeiro temos que definir o que é pesquisa. A noção de pesquisa tem uma definição na Capes, outra no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), outra no Ministério de Ciência e Tecnologia, outra no Conselho Nacional de Educação, outra no Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). E a pesquisa é um dos temas mais sérios da educação superior no Brasil. Isso porque uma universidade tem que ter ensino, pesquisa e extensão. Pesquisa é a descoberta de novas correlações nos fenômenos causais, no acontecer e na realidade? É saber o maior número de fontes de um conhecimento? É descobrir a inovação dentro do conhecimento? Ou estabelecer os seus correlatos interdisciplinares? Nenhuma dessas autoridades defi ne isso, a tal ponto que, para avaliar se uma universidade tem pesquisa, partiu-se para um sistema muito prático e a meu ver grosseiro: a presunção de que a instituição com certo número de mestres e doutores dispõe de pesquisa.

Em contrapartida, temos outro processo ligado à pesquisa. Existe hoje uma bela política de pesquisa aplicada, mas que não tem nada a ver com a universidade. É a chamada pesquisa dos fundos setoriais. A previsão orçamentária gira em torno de R$ 1,3 bilhão e engloba agronegócios, biotecnologia, energia espacial, hidromineral, petróleo, saúde, transporte. Nada disso tem a ver com a universidade, tudo vai para a empresa. Então, um dos grandes dramas do Brasil é que a política pública de pesquisa descartou a universidade. E, mais do que isso, na definição constitucional de exigência de pesquisa não há obrigação constitucional de apoio à universidade privada para esse fim. A Constituição deveria falar em pesquisa indeterminada, mas ela fixa obrigatoriedade de pesquisa na universidade pública. Isso gera um dilema muito grande. Como a universidade privada pode financiar pesquisa? Tira do guichê? Da sua mensalidade?

Geralmente as universidades privadas obtêm dinheiro para pesquisa a partir de subvenções, grants ou doações por meio de empresas, como Petrobras ou Vale do Rio Doce. Mas elas financiam pesquisas para áreas técnicas e tecnológicas do ensino universitário e não em ciências sociais. Seria importante criar uma espécie de Lei Rouanet para a pesquisa, em que o mecanismo de subvenções e o de estímulos pudessem ser perfeitamente definidos para a pesquisa dentro da universidade brasileira.

Desafios - Como o senhor vê a substituição do vestibular pelo Enem?

Mendes - O Enem ainda está com um problema sério. O MEC permite que ele qualifique a adequação para o acesso ao ensino superior, mas isso só vale para o ensino privado. Pela ordenação legal, o Enem não é um processo seletivo. E o acesso à universidade pública exige o processo seletivo.

Desafios - Qual a diferença básica entre as questões do Enem e do vestibular? O que o senhor observou de interessante?

Mendes - O Enem se preocupa em ter uma visão abrangente do conhecimento, uma visão referenciada e, sobretudo, uma visão histórica do conhecimento. Nós conhecemos a capacidade, o número de categorias que normalmente existe no vestibular. Hoje, o Enem avalia melhor qual é de fato o conteúdo do conhecimento humanístico. O Enem consegue fazer isso muito mais do que as clássicas questões fechadas de um exame vestibular.


"Seria importante criar uma espécie de lei
Rouanet para a pesquisa, em que o mecanismo
de subvenções e o de estímulos pudessem ser
perfeitamente definidos para a pesquisa
dentro da universidade brasileira"

Desafios - O que o senhor acha então desses cursos a distância, o chamado e-learning?

Mendes - Esses cursos ainda não se institucionalizaram, porque não têm a noção da arbitragem e do conhecimento referido. Não se pode ter um efetivo controle do acesso num curso a distância. Eu não sou contra esses cursos, mas acho que eles são um complemento do conhecimento. Como avaliação do conhecimento, porém, são impotentes, visto que essa tarefa exige ainda a pedagogia. Não se pode dar um diploma em conhecimento a distância. Como vou creditar junto à sociedade se aquele personagem sabe tudo aquilo que ele diz que sabe?

Desafios - Como o senhor vê o impacto da internet sobre a educação universitária?

Mendes - Acho que não nos demos conta ainda da mudança radical que o panorama universitário irá sofrer com o avanço da internet. Cada vez mais temos acesso imediato à informação. Acredita-se que, a todo instante, seja possível ter acesso à memória da realidade. O enciclopedismo muda o ethos da informação dessa nova geração. Ela não tem mais que memorizar nem ir aos livros, pois dispõe de computador. O grande problema é que não há mais juízo de valor sobre a informação. A internet está acabando com isso, e a universidade precisa recuperar a ágora, a praça, o cânon. O mundo da universidade começou com a possibilidade de discussão, visto que é, antes de tudo, um centro de arbitragem do valor do conhecimento. Como se faz a transmissão geracional senão pelo valor do conhecimento e sua relevância? Universidade não é só a informação, mas a valoração da informação.

Desafios - Que medidas podem ser tomadas para reduzir a repetência e a evasão escolar?

Mendes - Há uma correlação entre repetência e mau ensino e entre evasão e mau ensino. Não há dúvida de que quanto melhor o ensino, menor a repetência. A repetência não é só problema de vagabundagem e inaptidão. Agora, a segunda questão para resolver o problema é a penalização da repetência. O aluno não pode pensar que pode repetir indefinidamente. O acompanhamento familiar é fundamental para evitar o desinteresse e a evasão. Pais aplicados, filhos aprovados. É essa a solução.

Desafios - Como enfrentar o grande contingente adulto de analfabetos e analfabetos funcionais no país?

Mendes - O velho programa de alfabetização de adultos se fixava por demais dentro no analfabetismo strictu sensu. Mas o grande problema hoje do Brasil é o analfabetismo funcional. Precisamos ligar ao código de acesso à língua as quatro operações, a inserção geográfica, a inserção histórica e o começo da noção de cidadania. Creio que a grande solução para o analfabetismo é o Bolsa Família. Cria-se um ambiente em casa para o aprendizado e a socialização e mais uma vez o agente disso é a família. O drama do analfabetismo antigo era a reclusão, o isolamento do Brasil marginal. Ao se socializar, o país deixa de fica analfabeto.